domingo, 29 de dezembro de 2019

A mãe, a filha e o espírito da santa



RResenha

Livro: A mãe, a filha e o espírito da santa
Autor: P. J. Pereira
Ano:2017
Nº de páginas: 496
Editora: Planeta

P. J. Pereira, autor da trilogia Deuses de dois mundos, lança mais uma obra prima da literatura nacional. Me interessei pelo livro logo que li seu título. Quando fui buscar saber mais sobre a história, fiquei completamente apaixonada. Procurei bastante e consegui adquiri-lo em uma promoção de uma livraria.

O livro conta a história do novo messias, ou melhor, nova, Pilar da Anunciação. Nascida no Maranhão, na cidade de Codó, filha de Maria e três anjos, em meio a uma família praticante do terecô, religião oriunda do Maranhão, que mistura preceitos da Encantaria e Umbanda.

A obra é dividida em três partes, homônimas das do título. A parte I, intitulada A mãe, conta a história da concepção de Pilar e um pouco da vida de sua mãe Maria, ao mesmo tempo que narra os primeiros períodos da infância da nossa messias. A segunda parte, A filha, narra a adolescência e primeira fase adulta de Pilar, enquanto a parte III, O espírito da santa, aborda especificamente a atuação de Pilar como líder religiosa. Tudo isso embalado à uma trilha sonora escrita pelo próprio autor.

O livro trata, na minha opinião, sobre preconceitos. De todos os tipos possíveis. Ao longo do enredo, podemos perceber o preconceito da cidadezinha de Codó em relação à Pilar, pelo fato dela ser menina e escolhida Messias; podemos observar o preconceito da sociedade em relação aos praticantes de religiões de matriz africana; o preconceito , novamente, das pessoas, quando são abordadas ao longo do livro relações homossexuais.

Existem cenas muito fortes, de abuso, violência, estupro, que podem impressionar os mais sensíveis. Mas são cenas necessárias para a construção da trama. Tem muitas cenas de sexo também, mas mostrando que o sexo é uma atividade normal da vida, assim como comer ou dormir.

O que me deixou mais impressionada foi a construção de todos os personagens: parecem tirados de algum filme, ou série, ou mesmo da vida real, tamanha a verossimilhança. Pilar , sobretudo. Ela é retratada como uma líder humana, que tem partes boas e ruins, que vão se alternando ao longo do tempo. É necessário que estejamos livres de todo pudor para conseguir acompanhar as tramoias que ela se mete. Por vezes amada, outras odiada, mas, humana. As descrições dos cheiros, gostos, sentimentos são meticulosas, detalhadas e novamente, cinematográficas. O tempo inteiro imaginei uma adaptação para as telinhas ou telonas da obra.

Respira-se Brasil ao longo de todo o livro. O autor, neto de nordestinos, escreveu o livro utilizando gírias da região, o que causa uma maior imersão na história. Parece que estamos ouvindo a conversa da boca dos personagens. Pude conhecer mais sobre as diversas manifestações religiosas do nosso país e que não fazia a mínima ideia. Além de poder conhecer melhor três locais: Maranhão, Brasília e São Paulo, que são os espaços onde se desenrola a trama. Como a história atravessa as décadas de 60,70,80 e 90, podemos sentir a inserção do tempo através de sutilezas: a perseguição aos comunistas (qualquer um que discordasse do governo ou lesse livros proibidos) na ditadura é um exemplo de marca da temporalidade.

O próprio autor conta que escreveu a história inspirado em casos de abuso religioso ao redor do mundo. Vários profetas da fé se aproveitam da boa vontade alheia, para infligir sofrimentos os mais variados possíveis e isso fica muito bem retratado no livro: pessoas perdem empregos, casamentos, filhos, amigos, por se isolar em uma religião que não permite contato com pessoas “de fora”.É um livro riquíssimo culturalmente e esse caldo só poderia ter sido proporcionado por um autor brasileiro de qualidade como P. J. Pereira. Recomendo fortemente a leitura.


domingo, 8 de dezembro de 2019

Ponciá Vicêncio


Resenha
Livro: Ponciá Vicêncio
Autora: Conceição Evaristo
Ano: 2017
Editora: Pallas
Número de páginas: 120

Conceição Evaristo, não escreve, faz “escrevivência”. Mulher negra, nascida na periferia de Minas Gerais, se formou adulta como professora de Escola Normal, e passou em um concurso para o magistério no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura pela PUC e doutora pela Universidade Federal Fluminense. Disputou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, que perdeu para o jornalista Cacá Diegues. Sua campanha para a Academia foi impulsionada pela internet e teve amplo apoio popular. Apesar disso, não ocupou a cadeira, em uma Academia majoritariamente composta por homens brancos(atualmente há apenas um homem negro e cinco mulheres brancas contra trinta e três homens brancos na Academia). Autora de inúmeros contos e poesias, tem em Ponciá Vicêncio seu romance de estreia.

A obra narra a vida de Ponciá Vicêncio. Nascida em um quilombo, neta de um negro que foi escravizado, Ponciá cresceu no interior com sua família, pai, mãe e irmão. Não conheceu muito o avô, que morre quando ela era pequena, mas todas as pessoas afirmam que ela receberá um dia a herança dele. Ponciá e sua mãe, Maria Vicêncio, fazem objetos de barro para vender. Seu pai e irmão trabalham na terra dos brancos. Após a morte do pai, Ponciá decide se mudar e ir tentar a vida na cidade grande.

Ponciá leva uma vida difícil na cidade e vive mais nas suas memórias do que no momento presente. A história é narrada por um narrador em terceira pessoa, observador, e constituída de flashes, que não seguem uma ordem cronológica. 

É interessante notar que a história trabalha com as memórias, que podem ser encaradas como única e exclusivamente do ponto de vista individual como serem tratadas como a memória da história do povo negro. Quando é contado no livro que o sobrenome Vicêncio vem do coronel Vicêncio, que colocava seu sobrenome nos escravos, isso não diz respeito apenas à esse caso individual, mas reflete esse apagamento da história dos negros que foram escravizados. Ponciá tenta o tempo inteiro recuperar essa memória, perdida. Quando Ponciá relata que o pai e irmão continuam a trabalhar na terra dos brancos, mesmo o pai tendo sido de ventre livre, e não recebem salário, sendo as relações no quilombo de troca de materiais, isso diz muito sobre a condição do negro no Brasil pós abolição. Não houve uma libertação de fato com a assinatura da Lei Áurea e não igualdade ainda em nosso país entre negros e brancos, visto que os negros são mortos pelo braço armado do Estado, são os que ganham menos, acessam menos às Universidade. Apesar disso, o mito da democracia racial se faz presente. É interessante, ainda levando em consideração esse ponto, quando seu irmão Luandi chega na cidade e vê soldados negros, exclama: nunca vi negro ocupar posição de poder. Depois, com o tempo, ela vai desconstruindo essa visão de que o soldado ocupa alguma posição de superioridade , e descobre que ele é apenas mais um subalterno com uma ilusão.

O modo de contar a história me fez lembrar de outras escritoras negras, como Maria Firmino dos Reis e Carolina Maria de Jesus. Conceição tem na sua prosa, poesia. Dotada de lirismo que consegue transformar em beleza até mesmo o movimento da folha de uma árvore.

Dói no âmago , na alma, ler certas passagens que jogam em nossa cara as chagas do racismo pungente e institucional que insistem em fazer parte do cotidiano do Brasil, último país das Américas a abolir a Escravidão. As dores de uma mulher negra no seu cotidiano, tudo que ela tem de enfrentar para conseguir viver de maneira digna, evidenciam nossas injustiças diárias. É interessante destacar que apesar de Conceição ser uma autora pós moderna, ela também toca profundamente nas questões das desigualdades, das estruturas da sociedade, o que faz com que sua escrita seja dotada de originalidade. Depois de tudo isso, só consigo pensar que quem saiu perdendo a oportunidade de imortalizar uma escritora tão completa foi a Academia Brasileira de Letras. Azar o deles, sorte a nossa, pois ficamos conhecendo essa autora de qualidade inigualável. Recomendo fortemente a leitura!


2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...