domingo, 29 de abril de 2018

Memórias Póstumas de Brás Cubas


Resenha
Livro: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Autor: Machado de Assis
Lançamento: 1881

No Brasil do fim do século XIX tivemos várias manifestações em relação à questões sociais, culturais e econômicas. A literatura, as artes em geral possuíam o objetivo de analisar criticamente a sociedade extremamente desigual, tendo o ser humano como objeto central de toda a análise.

É nesse contexto que surge um dos grandes nomes da literatura brasileira e mundial: Machado de Assis. Nascido no Rio de Janeiro, negro, de origem humilde. Foi criado pela madrasta, pois seu pai e sua mãe morreram cedo. Frequentou a escola pública e se tornou funcionário público, o que lhe conferiu certa estabilidade financeira. 

O Realismo no Brasil tem como origem esse livro que resenho, quando houve a transição do romantismo para o realismo. Durante esse período histórico, o Brasil passava por diversas transformações, como já mencionado no início do texto.  O realismo investigava o comportamento humano ao mesmo tempo que denunciava a visão idealizada na escola literária anterior, o romantismo.

A presente obra é narrada por um defunto autor, tendo um narrador morto, o Brás Cubas, que conta toda sua vida, começando de um ponto não comum: sua morte. Até então, nenhuma outra obra havia sido contada pelo ponto de vista de uma pessoa já morta. Brás Cubas, já estando morto, consegue narrar sua vida e falar sobre a sociedade de maneira irônica, ácida e descompromissada, dando ao leitor uma sensação de veracidade , presente em toda a história.  A narrativa não possui uma ordem cronológica, sendo o fio condutor as lembranças de Machado: começa com sua morte, vai ao seu nascimento e dá voltas entre esses dois marcos temporais.

Antes dessa obra, as histórias literárias se baseavam mais no fantástico, no irreal. A grande beleza de Memórias Póstumas está na sua total possibilidade de acontecimentos, visto que são narrados acontecimentos do cotidiano, levando-nos à reflexão a partir de fatos que aconteciam frequentemente no dia a dia da população que leu o livro na época.

Brás Cubas é um cidadão que nunca trabalhou na vida, pois sua família vivia às custas da escravidão. Em relação à escravidão, Machado é assertivo: condena veementemente. Sendo ele abolicionista, podemos perceber no enredo desse clássico, críticas ao modo de vida da aristocracia, da burguesia ascendente, que enriquecia às custas do trabalho de negros escravizados. Temos passagens bem ácidas em torno desse tema, onde Machado nos mostra um Brás Cubas escravocrata e que não nos agrada em nada, tocando na ferida, em um momento crucial na história do Brasil.

Brás Cubas não vive um romance de contos de fadas com suas amantes; não se torna um político bem sucedido; não teve filhos, enfim, sua vida foi um sucessão de negativas, como o próprio evidencia ao longo de vários trechos. Podemos perceber um paralelo com o vazio que era a vida dos burgueses e aristocratas, a futilidade latente de seu modo de vida.

Se hoje em dia, essa obra ainda é capaz de nos chocar, imagino quando foi lançado no fim do século XIX, o furor que deve ter sido. Um clássico da literatura brasileira, que recomendo fortemente a leitura, a fim de refletirmos através do nosso cotidiano, de onde podemos tirar lições valiosíssimas.

domingo, 22 de abril de 2018

O professor


Resenha
Livro: O Professor
Autor: Cristovão Tezza
Lançamento: 2014

Revisitar nosso próprio passado pode ser uma experiência traumática. A obra O Professor, do escritor brasileiro Cristovão Tezza, autor de O Fiho Eterno, faz justamente isso. Heliseu é um professor da disciplina filologia românica da universidade e que está indo receber uma homenagem na faculdade em que leciona. O tempo cronológico do livro é a manhã em que Heliseu está se aprontado para comparecer à homenagem, porém, ao longo dessa manhã, o professor acaba rememorando sua vida inteira: o seu casamento; sua paixão por uma ex aluna; sua relação com o filho homossexual, entre outros fatos.

Ao mesmo tempo em que temos uma recapitulação da vida individual de Heliseu, tem-se no livro uma retomada da história do Brasil, desde os tempos da ditadura militar, passando por todos os governos, incluindo Lula e Dilma Roussef. A todo momento tem-se a passagem do plano individual para o coletivo e vice-versa.

O livro é muito bem escrito. Como o personagem principal é professor de filologia românica, disciplina que aborda a origem da língua, há trechos de livros com linguagem erudita, mas que são facilmente compreensíveis através do contexto. Mas a linguagem majoritária do livro carrega traços da oralidade. Pode-se perceber expressões características da língua falada no texto escrito.

A todo momento no livro o personagem questiona a velhice, onde pude fazer um paralelo com a matéria que ela lecionava na faculdade: assim como sua disciplina, que ao longo dos anos, tem sido considerada inútil, pelos discentes e docentes, visto que nenhum outro docente gostaria de pegar a matéria, ele mesmo, Heliseu, também foi envelhecendo e perdendo, aos olhos da sociedade, sua utilidade. Quando o personagem utiliza a expressão dos encontros intervocálicos, sugere que o tempo está passando, e a língua e a sociedade, assim como ele próprio, sofreram transformações.

 O livro é todo narrado do ponto de vista do Heliseu. Algumas passagens da vida dele até me fizeram criar um tipo de barreira para ser conquistada pelo personagem: o fato de ter enganado sua mulher com uma ex aluna; rejeitar o filho homossexual; não cuidar do filho quando pequeno, deixando a responsabilidade para sua esposa, entre outros. Mas, refletindo após a leitura do livro, acredito que seja esse o objetivo de Tezza: mostrar que somos seres imperfeitos e contraditórios. Em nossa intimidade, temos atitudes que seriam consideradas desrespeitosas. Tezza nos desnuda, ao mesmo tempo que nos mostra toda a intimidade de Heliseu. Afinal, quem tem coragem de contar sua história, nua, crua e sem floreamentos?

domingo, 15 de abril de 2018

Orlando: Uma biografia


Resenha
Livro: Orlando
Autora: Virginia Woolf
Lançamento: 11 de outubro de 1928

Virginia Woolf nasceu em 1822 na Inglaterra e se tornou uma das mais importantes figuras da literatura moderna. Estreou na literatura em 1915, com o romance The Voyage Out. Virginia sofria de profunda depressão e bipolaridade, e veio a se matar em 1941, jogando-se em um rio.

Apesar de ter sido casada a vida inteira com Leonard Woolf, crítico literário, teve um romance com sua amiga Vita Sackville West. O livro Orlando é uma carta de amor à sua amante Vita. Nessa obra prima da literatura mundial, temos um biógrafo que acompanha a vida de Orlando, um personagem imortal, durante quatro séculos: o começo da história se dá na era elisabetana na Inglaterra, no século XVI até chegar à segunda década do século passado. Durante todo esse tempo, Orlando morou em vários países diferentes. Um dos pontos interessantes é que o livro termina no tempo presente (presente da escritora, naquela época), no dia 11 de outubro de 1928, mesma data do lançamento do romance. Apesar de acompanhar a trajetória da personagem durante quatrocentos anos, Orlando termina a história com apenas 36 anos.

Em um dia, quando Orlando tinha 30 anos, dormiu durante uma semana e acordou mulher. Simples assim. Sem sofrimentos ou dores. Orlando viveu 30 anos como homem e acorda mulher em determinado momento. Se a questão dos transgêneros já é polêmica nos dias atuais, imagina no começo do século passado? Virginia já entendia a questão de gênero há quase um século atrás e hoje em dia ainda lutamos pelos direitos das pessoas trans, homossexuais, da população LGBT de maneira geral. Ponto de destaque é que quando Orlando chega em sua residência como mulher, nenhum dos seus empregados duvida de sua identidade. Orlando já mandava um recado em plena década de 20 do século passado: devemos respeitar e legitimar a identidade de gênero de todas as pessoas. Abaixo segue um trecho que mostra como ocorreu a mudança de gênero de Orlando:

“A mudança parecia ter ocorrido completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que  (1) Orlando sempre tinha sido mulher, (2)Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o seguinte fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante.”

É muito interessante a maneira como a autora aborda essa questão. Orlando era um sedutor quando homem, por vezes machista, acreditava que as mulheres deveriam estar sempre arrumadas, penteadas,castas,caprichosas e que viviam para servir aos homens, sendo sentimentais e temperamentais em exagero. Quando Orlando se torna mulher, passa a questionar tudo aquilo que aceitou como certo durante toda sua vida, sobre o gênero oposto que possuía. Seriam as mulheres mesmo frágeis, temperamentais? A autora aborda o machismo presente na sociedade através do estranhamento que Orlando sente sendo do gênero feminino ao constatar que na realidade, ser mulher vai muito mais além daquelas frivolidades que os homens diziam que as mulheres possuíam.

Em minha opinião, Orlando possuía um uma identidade de gênero fluida, se comportando ora como representante do gênero masculino, ora do feminino, como podemos constatar em um trecho abaixo:

“Embora diferentes, os sexos se confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilação entre um sexo e outro; e às vezes só as roupas conservam a aparência masculina e feminina, quando, interiormente, o sexo está em completa oposição com o que se encontra à vista.”

A autora abordou, através desse romance, a pluralidade existente nos seres humanos, somos diversos e complexos. Orlando, quando se descobre mulher, continua a ter atração por mulheres e também começa a sentir por homens.  A orientação sexual(por quem você se atrai) é independente de sua identidade de gênero, que é o modo como você se enxerga no mundo. Nesse ponto podemos enxergar um retrato de sua companheira Vita e a relação que as duas mulheres tiveram durante alguns anos.

Nesse romance também temos a passagem do tempo de maneira relativa, pois, apesar de atravessar quatro séculos, Orlando termina com 36 anos. Ou seja, existem pessoas com as quais dividimos pouquíssimo tempo de vida e que parecem tão intensos, que demoram séculos. Em contrapartida, podemos viver anos com outra pessoa e parecer que passou apenas um dia.

Além de todas as questões de gênero abordadas, machismo e passagem de tempo, a autora também fala sobre o fazer literário. Temos passagens belíssimas sobre como eternizar momentos através da literatura, o papel do escritor, do poeta, entre outros.

Somado à todos esses assuntos presentes no enredo, que por si só, já tornam a obra um clássico, temos a escrita maravilhosa de Virginia, que parece uma pintura. As descrições são minunciosas, por vezes imaginei a cena que estava lendo presente em um quadro, tamanha atenção aos detalhes dada pela autora. Também há a presença de forte desenvolvimento psicológico de seus personagens, fato que não era comum nos romances da época, que somente serviam para falar sobre determinados assuntos, sem desenvolver psicologicamente seus personagens, sendo esse mais um ponto que contribui para que a obra seja considerada um clássico atemporal, que deve ser lida, distribuída, refletida e compartilhada. Extremamente necessária nos dias atuais.

domingo, 8 de abril de 2018

A morte feliz


Resenha
Livro:  A morte feliz
Autor: Albert Camus

Por que vivemos e por que morremos? Segundo Albert Camus, só teme a morte aquele que teme a vida, pois a primeira é prerrogativa da última.  Autor franco-argelino, filósofo do absurdo, recebeu o prêmio Nobel em Dezembro de 1957. Sua mãe lavava roupas para fora e seu pai foi morto na Primeira Guerra Mundial, quando ele tinha apenas um ano. Seus familiares, por necessidade, preferiam que Camus trabalhasse como tanoeiro, mesma profissão de seu tio, mas estimulado e patrocinado por professores, prossegui seus estudos. De acordo com Camus, o absurdo está no paradoxo da existência humana: apesar do homem ser frágil, recusa-se a se deixar levar por uma vida vazia de sentido.

Em A morte Feliz acompanhamos a história de Mersault, um operário pobre, que acaba encontrando uma maneira de ganhar dinheiro: matando um ex amante de sua namorada. O homem , que é morto por Mersault logo na primeira parte do livro, não possuía pernas e tinha um intenso desejo de se matar, faltando-lhe coragem para realizar esse ato.

Para Mersault, um ponto necessário para a felicidade é o tempo. Enquanto passamos cerca de oito horas por dia presos em trabalhos que não gostamos, que sugam nossas energias, não teremos tempo para sermos felizes e viver a vida. Viver , e não apenas sobreviver, exige contemplação, reflexão. Quem é pobre, necessitado de bens materiais para sobreviver em nossa sociedade capitalista, não tem tempo de pensar e, portanto, de ser feliz.

A trama do romance é bem simples e pouco desenvolvida. Porém, acredito que o objetivo principal do autor foi cumprido: levar o leitor a refletir. A meu ver, a finalidade da obra é nos levar a pensar na vida e em sua finitude. O que dá sentido a vida é exatamente a consciência que possuímos de que um dia ela se esvai. A partir do momento que encaramos esse fato, estamos livres para viver todos os estágios da existência humana.

Livros que nos levam a pensar devem ser saboreados nos dias atuais, época de profundas transformações na sociedade humana, com informações vinte e quatro horas por dia. É necessário que façamos o exercício de refletir acerca da nossa existência. Como disse Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, a leitura é uma atividade solitária, que nos leva a meditar. Eu vou além e acredito que, apesar de em primeira instância a leitura ser realmente uma atividade individual, as ponderações que esse ato nos traz e os debates devem ser compartilhados com nossos pares, a fim de que possamos enxergar novos horizontes e desvelar sentidos outros.


domingo, 1 de abril de 2018

A distância entre nós


Resenha
Livro: A distância entre nós
Ano de lançamento: 2006

Um livro, muitas reflexões. Ultimamente, tenho lido livros bem ricos, que me levam a pensar na vida e no sentido que atribuímos a ela. Mas a obra A distância entre nós, de Thirty Umrigar, me fez pensar mais do que os outros livros que li nos últimos tempos, pois aborda assuntos que me são muito caros: raça, classe, gênero, e sexualidade.

Através de uma narrativa fluida, porém não menos densa, a autora nos faz conhecer duas personagens tão distintas e tão semelhantes, ao mesmo tempo: uma empregada e sua patroa. A história se passa na Índia atual. A empregada se chama Bhima e passou vários anos de sua vida dedicados a servir sua patroa, Sera, uma mulher culta, bem educada e viúva parsi, uma casta de grande prestígio na Índia.

Unidas pelo fardo de ser mulher em uma sociedade patriarcal, ditada por costumes machistas, assim como na nossa sociedade ocidental, criam um laço, que é cultivado durante longos anos de convivência e dores compartilhadas: Bhima sofre por ser pobre, não ter estudos, estar sempre sendo enganada e passa para trás pelas outras pessoas; em contrapartida, Sera teve um casamento extremamente infeliz, com um marido violento que a agredia. Bhima sempre a ajudava após as surras de seu marido, cuidando dela, o que fez fortalecer ainda mais os lações entre as duas mulheres.

Um ponto interessante é que os personagens possuem camadas, não são, de maneira alguma, maniqueístas. Por exemplo, apesar de Sera tratar Bhima bem, diferentemente da forma como suas amigas tratam seus empregados, não permite que sua funcionária sente nas cadeiras de sua casa nem coma junto com sua família. A família de Sera se resume a sua filha Dinaz, que está grávida e seu genro Viraf, os dois tendo indo morar com Sera após a morte de seu marido. A família de Bhima é ainda menor: após ser abandonada por seu esposo, Gopal, e sua filha morrer, seu único parente é Maya, sua neta, filha de Pooja, sua filha que morreu. Maya, com apenas 17 anos, está grávida de um filho ilegítimo, fato que traz preocupações exacerbadas para sua vó, pois elas vivem em uma sociedade conservadora, onde a “honra” de uma mulher importa bastante.

Ao longo da trama, podemos observar a maneira cruel com que os pobres são tratados pela sociedade. Basta apenas a pessoa possuir dinheiro e poder para ser bem tratada, com dignidade. Quando a pessoa é desafortunada, até mesmo os médicos de hospitais, que deveriam cuidar dos pacientes de maneira isonômica, acabam preterindo uns em relação a outros.

Maya muitas vezes questiona sua vó sobre a importância que ela atribui à família de Sera. Quantas vezes não deixou sua própria família sozinha para ir cuidar dos parentes de sua patroa? Esse questionamento me fez lembrar do filme brasileiro “Que horas ela volta?”, pois nele vemos uma mulher que cuidou a vida inteira do filho da patroa e acaba não tendo tempo para cuidar de sua própria prole.

Podemos perceber também como a sexualidade da mulher, seja aqui no ocidente como no oriente, é podada a todo momento. Como o nosso corpo não nos pertence: a sociedade patriarcal acredita possuir e controlar nossos corpos. Quando subvertemos essa lógica machista e fazemos uso de nosso corpo para nossos próprios prazeres ou necessidades , somos rechaçadas, enquanto os homens são estimulados a todo momento a se conhecer, a usar os corpos de outrem para se satisfazer. Seja aqui ou em Bombaim.

Vemos duas mulheres unidas pela dor de suas vidas, mas ao mesmo tempo, quando a verdade de uma dura realidade se revela, a classe a qual cada uma pertence acaba separando-as. O recado é claro: os poderosos do mundo nunca irão aceitar de bom grado que a plebe alcance e galgue os mesmos patamares que os seus.

A autora consegue construir muito bem a humanidade de todos os personagens: como podemos ser destrutivos, ou mesmo a mão que acalanta em horas difíceis. Somos seres complexos, plurais, não podendo ser definidos de maneira simplista. Acabo minha resenha por aqui recomendando fortemente a leitura do livro.



2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...