domingo, 15 de setembro de 2019

Úrsula


Resenha
Livro: Úrsula
Autora: Maria Firmina dos Reis
Ano da publicação: 1859

Vocês já ouviram falar de Maria Firmina dos Reis? Começo essa resenha com esse questionamento, visto que na minha época de escola nunca havia ouvido falar dessa incrível autora, mulher, negra, abolicionista. Ela é autora do primeiro livro escrito por uma mulher, Úrsula, com temática abolicionista. Pensem o que era naquela época uma mulher negra escrever um romance que trazia a história de negros e negras como pessoas, dotadas de características positivas, não animalizadas e além de tudo, questionando o sistema , patriarcal e escravocrata. Como diz a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, é necessário que escutemos outras histórias. A história não é única.
Em sua superfície, o romance possui um enredo simples e folhetinesco: a heroína que dá nome à história, Úrsula, uma mulher branca e pobre, que vive com a mãe, uma senhora paralitica, se apaixona por Tancredo, um jovem bacharel , que corresponde seu amor. Porém, a jovem é objeto da paixão de seu tio, irmão de sua mãe Luisa B., um comendador cruel, que jura que sua sobrinha será sua esposa , custe o que custa. Luisa B. e a filha vivem desamparadas, numa sociedade que tratava as mulheres como meros objetos de apreciação masculina(algo mudou?). Porém, esse é o enredo da superfície.
Logo no começo do livro somos apresentados à Tulio, um jovem negro escravizado, cuja senhoria é a Luisa B. que salva Tancredo, pois esse havia caído de seu cavalo e ficado desacordado. Nessa parte, já ficamos conhecendo as virtudes de Tulio, jovem lindo, negro, escravizado, gentil, bondoso e grato. Ele é colocada em pé de igualdade com o homem branco , Tancredo , e ainda por cima salva sua vida. Tancredo, muito agradecido, devota-lhe amizade, que é correspondida, além de comprar sua carta de alforria.
Também ficamos conhecendo dois outros negros escravizados: mãe Susana e Antero. Um dos capítulos mais comoventes do romance é a narrativa de mãe Susana de como era sua vida no continente africano, com marido, filha e mãe e do dia mais triste de sua vida, a sua captura pelos europeus. Ela narra a liberdade que tinha em sua terra natal e que nunca possuiria no Brasil, mesmo que um dia fosse alforriada, pois sua vida ficara lá. Aqui Maria Firmina inova trazendo uma historicidade ao negro. Na maior parte das histórias da época, os negros são simplesmente escravos, anistóricos, animalizados, sem família nem passado. Aqui, Firmina traz a perspectiva da mulher negra escravizada, e seu passado. Ponto muito ousado do romance naquela época.
A estratégia da autora é louvável: com um enredo na superfície simples e atrativo, acabaria por atrair aquela parcela da população que lia folhetins: burgueses, além da estrutura típica dos romances românticos. Com isso, esperava traduzir os horrores da escravidão para essas pessoas dotadas de privilegio. Firmina ainda usa os valores cristão para rechaçar a escravidão, numa época em que a própria igreja utilizada a Bíblia para justificar o sistema escravocrata.
Os marginalizados em uma sociedade patriarcal e escravocrata, as mulheres e os negros, tem voz e vez nesse romance. Contam sua histórias, são dotadas de sentimentos, de passado, de perspectivas, existem para além de fazer figuração ao homem branco, representado pela figura do Comendador. A mensagem é clara: enquanto existisse o sistema escravocrata e patriarcal, a felicidade de mulheres, negros e marginalizados da sociedade não seria possível. Pergunto a vocês por que um romance dessa magnitude e importância não tem destaque maior nas escolas? Por que, apesar de passados alguns anos do fim da escravidão, vivemos ainda num país racista, que possui em suas instituições a legitimação para suas práticas. Um país que mata seus jovens negros pelas mãos do Estado, que segrega, que magoa, que marginaliza. É necessário que façamos um esforço de sempre perseguir outras histórias, contadas pelo outro, pela mulher, pelo negro, pelo indígena, ou seja, pelo oprimido, a fim de mudar essa homogeneização, pois somos e sempre seremos plurais. Recomendo a leitura.

domingo, 1 de setembro de 2019

Vox


Resenha
Livro: Vox

Autora: Christina Dalcher

Ano: 2018

Número de páginas: 320

Editora: Arqueiro

 

Imaginem um mundo onde as mulheres só podem falar cem palavras por dia? Desde mulheres adultas até adolescentes e bebes recém-nascidos, onde o controle do número de palavras faladas é feito através de uma pulseira colocada no pulso dessas mulheres que as eletrocuta quando falam a centésima primeira palavra do dia. Essa é a premissa básica do livro Vox, escrito pela autora Christina Dalcher.

Esse futuro distópico, mas não muito distante, ocorre apenas nos Estados Unidos, com a eleição de um presidente ultra conservador, que foi precedido por um presidente negro. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. O livro foca-se na historia de Jean, uma ex neurolinguista e professora universitária, que, assim como todas as mulheres, perde seu direito à voz, ao trabalho, à possuir conta, acesso à internet, de ser alguém independente de sua família. Acompanhamos a rotina dessa mulher, que é casada e possui quatro filhos, uma menina e três meninos. Ela vive sua vida até que o irmão do presidente sofre um acidente e fica com um problema na região do cérebro responsável pela fala. Como ela é uma das únicas especialistas nesse assunto no país, o governo abre uma exceção e contrata ela para recuperar a fala do irmão do governante. Ela aceita, não sem antes relutar, mas exige coisas em troca, como tirar a pulseira de sua filha de cinco anos durante o processo de pesquisa.

O livro me lembrou muito outro livro de futuro distópico , O conta da Aia. Nele , as mulheres também perdem o direito às suas escolhas, se transformando em meros receptáculos de crianças. Esse livro, da autora Margaret Atwood, atualmente possui uma adaptação para a tv, na forma de um seriado, que já conta com duas temporadas. Como o livro foi escrito na década de 80, o seriado traz a história para os dias atuais. E qual não foi minha surpresa ao constatar que Vox se parece muito com o seriado. Assim como no seriado, em Vox a protagonista tem uma amiga feminista , que alerta a todos sobre o perigo que as mulheres estavam correndo, mas ninguém acredita, inclusive a protagonista. Assim como no seriado, as protagonistas tem filhos. Uma diferença é que em Vox a Jean possui filhos adolescentes, que estão sendo criados em um meio ideológico ultra- conservador e acabam absorvendo essas ideias. Mas as duas obras são bem similares, por isso o presente livro não me despertou tamanho assombro e surpresa, pois já tinha sido surpreendida anteriormente com a adaptação feita do Conto da Aia.

Em Vox, a narração se dá em primeira pessoa. No meu ponto de vista, as personagens não são muito bem construídas. Gosto bastante de obras onde o autor humaniza seus personagens, dotando-os de atitudes contraditórias, por vezes egoístas, mas acho que essa tentativa foi um pouco fracassada nesse livro. Eu vários momentos me vi com raiva da personagem tamanho o egoísmo dela em algumas de suas motivações. Primeiro, quando jovem ela não se importava com política e ainda ridicularizava sua amiga que se importava. Só passa a querer discutir o assunto quando ela se torna minoria. Tem uma passagem que tenta problematizar o feminismo branco liberal, mas não é desenvolvido no livro, sendo trazido muito jogado, o que acaba prejudicando o envolvimento com essa parte da história. Uma personagem evidencia que as feministas brancas só se preocupam com as pautas das feministas brancas, no que a protagonista sente o constrangimento dessa fala, mas não muda em nada suas atitudes.

O final do livro, apesar de subverter um pouco a lógica que vinha se desenvolvendo, o que acho um aspecto positivo, é muito apressado. Os fatos se resolvem muito rapidamente e se encaixam perfeitamente. Há um clímax que vai se resolvendo, como peças em um quebra cabeça, com pouca complexidade. Isso não me agradou muito.

Apesar dessas críticas, é um livro acessível à todos os públicos, por sua linguagem clara e simples: homens e mulheres deveriam lê-lo e refletir sobre. Nos tempos em que vivemos, onde aqui mesmo no Brasil tivemos a eleição de um candidato que se mostrou misógino, homofóbico e racista durante sua campanha, é um ótimo exercício a leitura dessa obra para questionarmos e conjecturarmos qual será o futuro não só das mulheres, mas dos oprimidos, que não fazem parte do ápice da escala de poder. Como ler para mim, é, além de tudo, uma atividade que desperta empatia, que nos coloquemos no lugar do outro, acredito que seja uma obra necessária, apesar das minhas críticas. Recomendo a leitura, prestando atenção aos detalhes. Termino o texto com uma frase da grande pensadora Simone de Beauvoir, que tem muito a ver com a temática do livro.

 

“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”

2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...