sábado, 28 de outubro de 2017

O Deus das Pequenas Coisas

                                                    Foto: Emanoel Daflon

Resenha
Livro: O Deus das Pequenas Coisas
Autora: Arundhati Roy
Ano de lançamento: 1997

A história do livro se passa em vários momentos: na Índia da década de 60 mesclando momentos da Índia atual (para a época do livro), na cidade de Ayemenem, estado de Kerala . A obra gira em torno de dois irmãos gêmeos bivitelinos muito unidos: Rahel e Estha. Esses irmãos foram separados quando tinham sete anos de idade, por conta de um acontecimento que mudou e moldou a vida dos dois e de toda a sua família. A partir desse acontecimento, somos convidados a conhecer profundamente outros personagens dessa trama.

Passamos a conhecer a intimidade de Ammu, a mãe dos gêmeos, que tinha um sonho de viver a vida, mas acaba casando com o primeiro homem que aparece na sua frente, para se libertar de seus pais, porém acaba caindo em outro tipo de prisão: a de um marido alcóolatra e violento; conhecemos Chacko, o tio dos gêmeos que não consegue superar o divórcio com sua ex-mulher; conhecemos Mamacchi, a avó cega das crianças; Baby Kochama, tia-avô e inimiga, sempre pronta a fazer mal a qualquer pessoa por puro prazer; Sophie Mol, a prima dos gêmeos que tem um desfecho trágico na história e finalmente Velutha, um sindicalista, membro do Partido Comunista, e paravan, intocável.
O livro aborda muito bem a questão dos intocáveis na Índia. As situações que essas pessoas passavam simplesmente por terem sido designadas ao nascer como pertencentes da casta dos intocáveis, que não possui outra função na sociedade, a não ser a de servir os tocáveis. O livro também trabalha muito bem a questão do marxismo e do partido comunista, que estava muito em voga na sociedade indiana, como uma tentativa de acabar com o sistema de castas na sociedade indiana, pelo menos em tese.

A escrita do livro é extremamente poética, me fazendo lembrar por muitas vezes o realismo mágico de Gabriel Garcia Marquez. A autora utiliza muitas figuras de linguagem, tais como metáforas, sinestesias, personificação, hipérboles. Não somente figuras de linguagem, mas outros recursos literários para podermos entender como os gêmeos pensavam e se expressavam. Eles gostam de juntar algumas palavras, como em Refrescodelaranja, refrescodelimão. Outras, eles gostam de separar, como em De Pois. Assim, podemos observar como essas crianças pensavam, e o texto ganha um tom próprio peculiar por conta desses detalhes. Aliás, a obra toda é um conjunto de detalhes extremamente bem trabalhados.

A obra nos faz refletir sobre as pequenas coisas do cotidiano e como no final das contas, são elas que importam. Elas que moldam nossa vida, seja de forma positiva ou negativa. Sempre nos lembraremos dos pequenos detalhes de um dia muito feliz ou muito triste por exemplo. Nos leva a refletir também, assim como na vida dessa família indiana tradicional, parafraseando o rapper Don L: uma frase muda o fim do filme. Ou seja, pequenos acontecimentos determinam e mudam o rumo de nossas vidas e podem influenciar no caminho traçado por nós a partir deles. Nos nossos sentimentos, nossos medos, angústias.

Podemos fazer uma reflexão também sobre o amor, a partir da relação proibida entre Velutha e Ammu. Afinal, quem merece ser amado? E quanto? E como? Os dois, mesmo sabendo de todos os riscos envolvidos na relação entre um tocável e um intocável na sociedade tradicional indiana na década de 60 escolhem viver um breve relacionamento, pois afinal, é nesses pequenos momentos compartilhados que os dois sofredores, por motivos diferentes, encontram a felicidade. O Deus das Pequenas Coisas e a sonhadora Ammu.


Quando lerem o Deus das Pequenas Coisas, prestem atenção aos detalhes, à sonoridade, ao não dito, que tem tanto ou maior significado do que é dito dentro do universo da trama. E mergulhem nessa leitura!

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A invenção das asas

                                             Foto:Emanoel Daflon

Resenha
Livro: A invenção das Asas
Autora:  Sue Monk Kidd
Ano de lançamento: 2014

Hetty “Encrenca” Grimké: uma menina que era escrava e foi dada de presente à uma outra menina de sua idade quando tinha 10 anos. Seu nome de “branco” é Hetty, mas tradicionalmente os negros davam nomes aos seus filhos que correspondiam às características percebidas de sua própria personalidade, por isso Encrenca. Sarah Grimké: filha de juiz, moradora da Carolina do Sul, abolicionista, e feminista. A obra em questão tem essas duas protagonistas, e retrata a vida das duas durante 35 anos. Baseado na figura histórica de Sarah Grimké, uma abolicionista e feminista que acreditava que os negros eram iguais aos brancos, no século XIX, na Carolina do Sul, altamente escravocrata e racista.

Hetty, quando tinha 10 anos foi dada como propriedade para a Sarah quando esta fez 11 anos, mesmo Sarah tendo sido contra a posse de pessoas. Desde pequena, Sarah acreditava que negros e brancos eram pessoas iguais e deveriam gozar dos mesmos direitos. Desde pequena, lutava para se libertar de uma sociedade conservadora, preconceituosa, inclusive para se libertar de sua própria família. Já Hetty, sempre sonhou com a liberdade, para si e sua mãe, Charlotte. Desde criança, acompanhava os castigos desumanizantes que os negros escravizados sofriam. Esse é um livro feminista, pois mostra a luta por liberdade e emancipação de duas mulheres, claro que em graus diferenciados. Podemos perceber isso com a fala de Hetty quando se dirige à Sarah:

                  “Eu sou presa pelo corpo, mas você é presa pela mente.”

Um ponto muito importante que podemos perceber no livro é a legitimação da escravidão por parte da igreja. Em alguns trechos em que a Sarah está na igreja, podemos perceber como os dogmas da igreja contribuíram para a perpetuação da escravidão no Sul dos Estados Unidos. Um exemplo que podemos observar, e que foi verídico, conforme informado pela autora, foi o fato de Sarah ensinar crianças escravizadas a ler na aula de catequese e ser punida pelo padre por conta disso. Sarah também tenta fazer a libertação de Hetty, da maneira como ela pode quando é pequena, ensinando a pequena Encrenca a ler.

Podemos perceber a visão que os escravos possuíam do Deus retratado pela igreja, por conta da legitimação da escravidão por parte da Igreja, nesse trecho de Encrenca:

“Carregava a imagem de Deus na minha cabeça. Um homem branco, segurando uma bengala como a sinhá ou evitando escravos como o senhor Grimké.”

A obra mescla capítulos em que a narração fica por conta de Sarah e outros capítulos que fica por conta da Hetty. Com isso, podemos ler e conhecer o lado da escravidão vivido e sofrido pelos próprios escravos. Quando elas são crianças ainda, podemos perceber como a Sarah tem direito a ter sonhos, perspectivas de vida, enquanto a Hetty tem a sua infância negada.

Podemos perceber a trajetória tão importante das irmãs Grimké, não somente a Sarah, mas também sua irmã Angelina, que foram abolicionistas e defendiam o direito da mulher e dos negros de serem tratados como iguais na sociedade. Repare, elas iam além do que estava imposto, visto que mulheres não poderiam falar em público, muito menos defender a ideia de que negros eram iguais aos brancos. Nessa época, o Norte dos Estados Unidos já condenava a escravidão, porém não existia a defesa de igualdade racial. Elas foram mulheres que abdicaram de riquezas, famílias em prol de perseguir seus sonhos de liberdade.

A metáfora estabelecida pelo título da imagem é sensacional. Os negros são tratados como criaturas dotadas de poder e mágica, na sua terra Natal e possuíam asas, que são cortadas quando são levados à força pelos diversos locais onde a escravidão ocorreu.

O livro é antes de tudo um livro sobre amizade, sobre amor entre mulheres, não no sentido sexual do termo, mas em relação a amizade, parceria, que é abordada de forma sutil e muito bem construída ao longo de toda a trama.

A autora é uma mulher branca, por conta disso, devemos refletir sobre o motivo de muitas autoras brancas conseguirem escrever sobre a época da escravidão e racismo, e fazerem tanto sucesso e gerarem comoção com suas obras, enquanto obras de escritoras negras não alcançam o mesmo sucesso. É necessário que cada vez mais as próprias protagonistas pertencentes às minorias marginalizadas sejam capazes de escrever sobre suas próprias histórias e alcançarem igual sucesso e comoção às escritoras brancas.

Recomendo fortemente a leitura, por todos os motivos já mencionados. Fecho a resenha com uma frase que me fez refletir muito acerca do conteúdo do livro, fala proferida pela Encrenca:


“Permanecer em silêncio frente ao mal é em si uma das formas do mal.”

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Quarto de despejo- diário de uma favelada

Foto de: Emanoel Daflon

Resenha
Livro: Quarto de Despejo
Autora: Carolina Maria de Jesus
Ano de lançamento: 1960

“Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário.”

Com essa fala da Carolina Maria de Jesus começo minha resenha. Quarto de despejo é o diário de uma mulher negra, pobre, favelada e mãe solteira que viveu no Canindé, extinta favela de São Paulo, às margens do Rio Tietê na década de 1950. O diário acompanha sua vida e rotina durante cinco anos, de 1955 até 1960.  Ela foi descoberta por um repórter, de nome Aurélio Dantas, que tendo sido convocado a escrever sobre a favela, conheceu Carolina e sensivelmente percebeu que ela tinha muito a contar.
Catadora de papel - e tudo mais que pudesse arrumar -, Carolina contava sua história através de cadernos velhos que encontrava no lixo. Ela era mãe de três crianças, as quais criava sozinha. Essa obra é extremamente densa, cruel e real. Realíssima! A autora estudou pouquíssimo tempo na escola, mas apesar disso, seu texto é repleto de lirismo e metáforas. Podemos perceber um exemplo disso na fala abaixo:

“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” 

Uma narrativa real e contundente dessa maneira só poderia ser obra de uma pessoa que vivia essa crua realidade. No livro, acompanhamos o relato de sua rotina e cotidiano da favela. Todas as brigas, violência, incesto, estupro, e principalmente e acima de tudo, a FOME. A fome é companheira fiel de Carolina e sua família durante toda a obra. Muitas vezes, senti vontade de chorar lendo trechos em que ela melhorava ou piorava seu humor de acordo com a disponibilidade de comida. Me fez refletir sobre pessoas que vivem nessa situação ainda, sem nem ter o que comer. Carolina vivia um dia após o outro. Sentimos na pele seu desespero quando não havia conseguido catar nada para tirar o sustento para seus filhos. Uma realidade cruel, que data da década de 50, mas não poderia ser mais atual. As favelas continuam a ser os Quartos de Despejo das cidades.
“É assim no dia 13 de maio eu lutava contra a escravatura atual- a fome.”
Como mulher negra e mãe, podemos perceber a opressão totalmente ampliada que Carolina sofria. O pai de um de seus filhos possuía recursos, mas mesmo assim não ajudava na criação de sua filha, ficando a cargo de Carolina todo o peso de sustentar sozinha uma família. Podemos perceber a todo momento como ela precisa se impor a todo momento para não ser mais uma mulher explorada e abusada dentro da favela.

“Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia na História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe: - Porque a senhora não faz eu virar homem.”

Para além de toda dificuldade, fome e violência retratada na favela, podemos perceber um fato marcante: a solidariedade entre os que nada possuem. Na maior parte das vezes, os moradores da favela brigam e se desentendem, fruto do contexto em que estão inseridos, que é desesperador. Mas muitas das vezes eles se ajudam. Compartilham comida, cantam, fazendo da vida um fardo mais leve, quando compartilhado.
Acredito que toda pessoa deveria ler essa obra prima da nossa literatura. Uma literatura verdade, contada por uma pessoa que viveu e sentiu toda aquela realidade retratada. Por isso, apesar de erros gramaticais, não poderia ser mais adequada, cumprindo a função da língua, que é estabelecer comunicação. 

Foi muito difícil falar sobre esse livro por que são tantas questões retratadas, tanta realidade imprimida, tanto sentimento, que fica difícil colocar em palavras toda a enxurrada de emoções descarregada em mim com a leitura dessa obra. Por todos os motivos citados (e muitos outros), não deixem de ler e refletir sobre esse livro. Indispensável, para nos formarmos e reformarmos como seres humanos!

2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...