domingo, 30 de dezembro de 2018

Desde que o samba é samba


Resenha
Livro: Desde que o samba é samba
Autor: Paulo Lins
Ano: 2012
Número de páginas: 303

Paulo Lins se consagrou como autor com seu primeiro romance lançado em 1997, Cidade de Deus. Passados 15 anos, lança seu segundo romance. O livro é um romance documental, feito  a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica, em livros, sites e falas de entidades de umbanda e candomblé, que retrata o surgimento do samba, a reinvenção desse ritmo, o surgimento de novos instrumentos,  no bairro Estácio, no Rio de Janeiro, assim como a origem da primeira escola de samba, Deixa Falar.

Além desse enredo público, a trama gira em torno de 3 personagens, de maneira mais privada: o malandro Brancura, o português Sodré e a prostituta Valdirene. Ademais, temos personagens secundários, tão importantes quanto esses, como Tia Almeida (tia Ciata), Silva(Ismael Silva), Bide e Bastos. Figuram pessoas importantes de maneira pontual, como Carmen Miranda, Mário de Andrade, entre outros.

Gosto de romances que instigam nossa curiosidade. Nem todos os episódios narrados são verdadeiros, então é necessário que haja uma pesquisa paralela à leitura do livro a fim de verificar a veracidade dos fatos.

O triângulo amoroso formado por Brancura, Valdirene e Sodré consegue nos prender desde o início. Os personagens são carismáticos. A todo momento eu conseguia imaginar um filme ou seriado resultando do livro.

É importante destacar: o livro narra o surgimento da Umbanda, pois é impossível falar sobre samba sem abordar a importância dessa religião estritamente brasileira, que surgiu em São Gonçalo, tendo completado 110 anos esse ano. As rodas de samba aconteciam nos terreiros de Umbanda e Candomblé a fim de driblar a polícia. Como o livro se passa entre os anos de 1927-29, havia pouco tempo desde a abolição da escravidão, menos de 50 anos. Portanto, qualquer prática que minimamente estivesse ligada aos negros sofria criminalização. A polícia espancava as pessoas , retia instrumentos musicais, impedia os blocos de pularem o carnaval.

No livro , a repressão da polícia é retratada como uma das possíveis causas para a criação da escola de samba, pois com a oficialização do bloco, seus participantes poderiam brincar o carnaval em paz.

O bairro Estácio é cenário principal dessa trama, com seus prostíbulos, bares e lanchonetes. A vida das prostitutas é retratada com muita semelhança com o real, com suas dores e sofrimentos. A efervescência , o caldo cultural existente naquela época, é sentido ao longo das linhas do romance. Existem muitas cenas de sexo e violência no livro, assim como é abordada a questão da homossexualidade de Ismael Silva. O autor mantem o nome verdadeiro apenas de alguns personagens, acredito eu que seja para se resguardar de possíveis processos. Mas com uma rápida pesquisa no google, você conseguirá descobrir a quem o autor se refere. Possui alguns traços da corrente literária naturalista, mas nada que seja exagerado, do meu ponto de vista.

A linguagem é acessível, dinâmica, com algumas gírias da época, que não prejudicam em nada o entendimento. Apesar de ter preferência pelo livro Cidade de Deus, gostei bastante da obra pelo seu conjunto: enredo, que é original, pois quase não se vê livros que retratam essas raízes do samba de maneira romanceada; personagens cativantes e complexos; descrições meticulosas que ficariam ótimas em um filme ou série; a importância da abordagem da cultura negra nos dias de hoje; violência institucionalizada do Estado, representada pelos policiais ( vemos como os sujeitos negros são marginalizados e estavam isolados com poucos anos passados da abolição da escravidão, e o Estado sempre se ocupando de traçar essa exclusão). Vale muito a pena a leitura !

domingo, 16 de dezembro de 2018

A cor púrpura


Resenha
Livro: A cor púrpura
Autora: Alice Walker
Número de páginas: 258
Ano: 1982

“Eu não sou escritora porque fiz faculdade. Sou escritora porque tenho coração”


Essa foi a fala da escritora Alice Walker, durante a Bienal no Distrito Federal, em 2012, em que esteve presente para inaugurar seu livro: Rompendo o silêncio- Um Poeta Diante do Horror em Ruanda, no Congo Oriental e na Palesina/Israel.  Autora de dezenas de obras de ficção, sendo a mais conhecida A Cor Púrpura. O livro foi adaptado para o cinema, sendo dirigido pelo Steven Spielberg, com a Whoopi Goldberg no papel principal, além de ter ganho o Pulitzer e o National Book Award. Nascida no sul dos Estados Unidos, em 1944, além de autora, é militante pelos direitos civis.

A obra conta a história de Celie, uma mulher negra, moradora do sul dos Estados Unidos, ao longo de mais ou menos 30 anos, na primeira metade do século passado. A narrativa se dá a partir de cartas escritas pela protagonista, primeiramente à Deus e depois à sua irmã.
 Celie sempre foi explorada, ao longo de toda a sua vida. Sofreu as mais inúmeras violências que uma mulher negra poderia sofrer naquele tempo (e ainda hoje). Com 14 anos, começou a ser estuprada pelo pai, fato que resultou em dois filhos, que foram doados pelo homem. A mãe sempre a odiou. Um homem chamado sempre de Sr, vai pedir a mão de sua irmã, Nettie, ao pai, que nega, mas oferece a mão de Celie. Como o Sr precisava de uma pessoa para cuidar de si e dos seus filhos, aceitou.

A partir disso, um novo ciclo de violência começa. O marido a trata como um objeto. Abusa dela psicologicamente e fisicamente. Celie também se refere ao marido como Sr, demonstrando como ela não se vê como esposa e companheira dele, mas como uma empregada, serva. Um dia, o marido  fala para Celie a seguinte frase:

“ Olha só para você. É negra, é pobre, é feia, é mulher. Você não é nada.”

Essa fala evidencia o tipo de tratamento que Celie recebia e que a mulher negra de maneira geral recebe na sociedade, sendo tratada como nada. Essa situação começa a se transformar com a chegada de duas diferentes mulheres na vida da protagonista: Sofia e Shug Avery. Sofia é esposa de Harpo, enteado da protagonista. Uma mulher forte, que não se curva às ordens de homem nenhum e não se deixa ser dominada. Celie não sabe como Sofia faz isso, pois a única coisa que sabe fazer é se manter viva.

“Mas eu num sei como brigar. Tudo o que sei fazer é continuar viva.”

Shug Avery é amante do marido da protagonista. Ela é trazida para a casa do casal, pois está doente, e o Sr faz com que Celie cuida dela. O que poderia se transformar em um tremenda confusão, acaba se tornando em uma possibilidade de auto conhecimento para nossa protagonista. Ela sente despertar em si a sexualidade. Nunca havia se sentido atraída pelos homens, e não sabia que era possível sentir tamanha atração por outro ser humano. As duas desenvolvem um lindo relacionamento, repleto de companheirismo e amizade, que faz com que Celie se reconheça como um ser pensante, uma mulher forte, que já passou por muitas coisas ruins na vida e mesmo assim, é resiliente, aguentou , resistiu.

As duas travam longos diálogos que são transcritos nas cartas de Celie. Uma parte que me deixou bastante impressionada é quando Celie fala para Shug sobre Deus. Ela fala que Deus não a escuta, pois sempre escreveu cartas para ele, em forma de desabafo e nada mudou em sua vida. Transcrevo abaixo um trecho com a fala de Celie:

“ Ela falou, Dona Celie, é melhor você falar baixo. Deus pode te escutar. Eu falei. Deixa ele escutar. Se ele alguma vez escutasse uma pobre mulher negra, o mundo seria um lugar bem diferente, eu posso garantir.”

Em relação à linguagem, é escrito da maneira que a protagonista falava, com traços de oralidade, o que confere mais veracidade à narrativa, pois sendo Celie uma mulher praticamente analfabeta, não faria sentido que suas cartas tivessem sido escritas em linguagem formal.

O livro aborda temas tão diversos quanto atuais: a opressão de gênero; o racismo, latente, que se perpetua até os dias de hoje; a relação lésbica e a bissexual (Shug é bissexual); a maneira como os negros são tratados no continente Africano e nos Estados Unidos, suas discrepâncias e sobretudo, o poder de união das mulheres. Vemos uma certa irmandade entre as mulheres do livro, que sempre se ajudam, a fim de se manterem vivas e sãs em uma sociedade que as odeia. Por todos os motivos, recomendo a leitura. Um livro dolorido, porém, extremamente essencial. Um clássico!

domingo, 2 de dezembro de 2018

O pequeno príncipe


Resenha
Livro: O Pequeno Príncipe
Autor: Antoine de Saint-Exupéry

Número de páginas: 95

Ano de lançamento: 1943

 

Antoine de Saint Exupéry (1900-1944) foi um escritor, ilustrador e piloto francês, é o autor de um clássico da literatura “O Pequeno Príncipe”, escrito em 1943. Apesar de à primeira vista parecer um livro infantil, a obra é repleta de simbolismos e metáforas. É um livro que é apreciado pelo público infantil por conta das suas ilustrações e linguagem fácil, e também é perfeito para os adultos que não deixam a sua criança interior morrer. É basicamente sobre isso que trata o livro. Vamos ao enredo.


Um piloto de avião começa narrando sua infância. Ele gostava de desenhar quando criança mas foi desestimulado pela sua família, que o obrigou a estudar para aprender uma profissão mais rentável. Quando passamos a conhecer um pouco a biografia do autor, podemos perceber que ele é o próprio piloto de avião, visto que também gostava de desenhar na infância, mas se tornou piloto por pressão da família. O protagonista nos revela que quando mostrava seus desenhos à gente grande, aos adultos, eles nunca entendiam o que estava representada verdadeiramente nas gravuras, somente as crianças eram capazes de reconhecer e entender além das aparências. Os adultos acabam complicando demais as coisas.


Em um determinado dia, esse piloto cai no meio do deserto e encontra um rapaz loiro, um pequeno príncipe. Esse menino veio de um planeta distante e já havia passado por vários outros planetas até chegar à Terra. Ele conta toda sua aventura ao piloto. Em suas andanças, encontrou um rei, um bêbado, um vaidoso, um geógrafo, um empresário, todos homens ocupados em seus próprios umbigos e em serem admirados e que não conseguem perceber a presença de nada além deles próprios.


O príncipe conta que em seu planeta de origem, cuidava de uma rosa, que se dizia única, mas pelo fato da rosa ser rude, acabou abandonando-a e foi viver suas aventuras em outros planetas. Quando encontra um jardim de rosas na terra, fica chateado pois acreditava que sua rosa era única. Mas depois descobre que o que faz uma pessoa ser única para a outra é o fato dela nos cativar. Como podemos observar através desse trecho:


“Era apenas uma raposa parecida com outras cem mil, mas eu a tornei minha amiga e agora é única no mundo.”


A rosa representa a esposa do autor. Os dois tiveram um casamento conturbado durante 13 anos e ele a abandonou em busca de outras “rosas” , mas achou essa forma de tentar se reconciliar com a esposa através da homenagem.


O livro segue com questões filosóficas e existencialistas, chega a me lembrar um Albert Camus para crianças, com o risco de estar sendo exagerada , e um pouco mais acessível ao grande público, diferente do autor argelino. Conseguimos compreender o valor das verdadeiras amizades, a importância de nunca deixarmos a nossa criança interior morrer, pois o modo como as crianças observam o mundo é inocente e desprendido da maior parte dos preconceitos que nos infectam quando adultos, fala sobre a dor da perda de alguém querido. Na minha opinião, o príncipe representa a criança interior do piloto. O encontro entre o piloto e o príncipe acaba sendo um encontro entre ele e ele mesmo, bem no estilo do filme Logan. Quem já viu consegue entender o que estou dizendo. Por todos os motivos, recomendo fortemente a leitura. Que possamos aprender a nunca abandonar de vez nossa maneira mais infantil, desprendida, de olhar o mundo, quando necessário. Afinal, gente grande é complicada! Vamos descomplicar!!!


domingo, 18 de novembro de 2018

Éramos seis


Resenha
Livro: Éramos Seis
Autora: Maria Jose Dupré
Número de páginas: 192
Ano de lançamento: 1943

O romance retrata a vida da família de Dona Lola, uma típica vida de dona de casa do começo do século passado. A história se desenrola através de mais de duas décadas e a partir dela é possível acompanhar as mudanças que a sociedade paulistana sofreu ao longo do anos .

Dona Lola vive com seu marido, Júlio, e seus quatro filhos: Carlos, Alfredo, Julinho e Isabel. Todos com personalidades incrivelmente diferentes entre si. Carlos sempre foi um menino amável, estudioso, responsável e trabalhador, apesar de um pouco moralista, e isso é até compreensível, visto que após a morte do pai ele passa a comandar a casa juntamente com sua mãe, mas não avancemos muito; Alfredo é o que se pode chamar de bom-vivã, não gosta de trabalhar nem de estudar, desde pequeno; Julinho sempre gostou de guardar dinheiro e teve faro para os negócios e Isabel era a menina vaidosa, garota dos olhos de ouro do pai.

Podemos acompanhar a trajetória dessa família, e maneira tão bem descrita e construída, com personagens tão complexos, que parece que estamos vivenciando uma história verdadeira, típica daquela época. Julio era um marido machista, mas temos que pensar que o livro se passa nas primeiras décadas do século passado, ou seja, olhar com a perspectiva atual para esses personagens se constitui em anacronismo. Apesar de ser um marido machista, deixar a educação das crianças na mão de sua esposa, viveu e se dedicou ao máximo à sua família; passava  o dia inteiro trabalhando para conseguir sustentar a família e apesar de ser um pouco sem jeito, meio durão, calejado pela vida, percebemos várias atitudes de amor dele para com os filhos.

Vamos observando a vida da família pobre, pelos olhos de Dona Lola. Uma personagem forte, dedicada mãe e esposa amorosa. Sempre fez de tudo para ajudar o marido financeiramente. A família era muito pobre, podemos observar o sacrifício deles para criar os quatro filhos.

O livro levanta algumas polêmicas da época. Naquele tempo não existia a lei do divórcio, que data da década de 70. O que existia era o desquite, mas a pessoa não poderia casar-se novamente. Isabel apaixona-se por um homem desquitado, o que leva ao desgosto de sua família, que acaba não aceitando aquele relacionamento. Apesar do preconceito e repulsa que sofreu, Isabel leva seu amor adiante. O paralelo que consigo traçar é com os relacionamentos homoafetivos atualmente, que em muitas famílias ainda são tratados como algo anormal e visto de maneira pejorativa pela sociedade. 
Espero que um dia isso seja apenas uma lembrança de um tempo em que tivemos que lutar por coisas óbvias. Assim como é super cotidiano hoje uma pessoa se divorciar, torço para que os relacionamentos homoafetivos sejam encarados com essa normalidade futuramente.

Outra polêmica levantada é sobre o comunismo. O Alfredo em determinada época da vida começa a frequentar reuniões comunistas. A gente acaba sentindo como era o tratamento dado a esse assunto na época. Ninguém sabia de fato o que era o comunismo, mas eram contra e as pessoas eram malvistas pela sociedade. Semelhança com a atualidade?

Carlos representa a moralidade cristã e tradicional. Sempre vigiando os irmãos, tomando conta, ainda que em sua visão para o bem, da vida de todos os irmãos, indo contra suas ações que ele considerava imorais. Para mim, fica claro que ele representa a sociedade com seus preconceitos arraigados. Mesmo assim, conseguimos entender essa responsabilidade que Carlos carrega e ele era uma pessoa tão doce e amável, que era difícil ficar com raiva dele.

Ao final da história, temos Dona Lola sozinha, sem maridos, com seus  filhos vivendo longe. Por isso o título: éramos seis. No começo, eram seis pessoas na casa; muitas brincadeiras, refeições na mesa, sacrifícios, mas acima de tudo, muito amor. Podíamos senti-lo emanando naquela família. Ao longo dos anos, mortes acontecem, separações, brigas, terminando a história somente com a matriarca da família e toda a sua solidão, permeada por lembranças felizes e outras nem tanto assim. Recomendo a leitura!

domingo, 4 de novembro de 2018

Jango e eu: memórias de um exílio sem volta


Resenha
Livro: Jango e eu: memórias de um exílio sem volta
Autor: João Vicente Goulart
Ano de lançamento: 2017
Número de páginas: 350

Não sou profunda conhecedora da história do Brasil, mas me interesso por livros de variados assuntos. Confesso que o que me chamou a atenção primeiramente nesse livro foi a foto da capa e o título. É uma fotografia de um menino no colo de um adulto, a criança olhando para seu pai e este contemplando o horizonte. O menino é João Vicente, autor do livro. Essa belíssima fotografia resume bem toda a obra: um relato, repleto de afeto de um filho para com seu pai.

O livro não se propõe a contar a história brasileira, com referências bibliográficas, pois, nas palavras do próprio autor, já existem inúmeras obras que se prestam a esse papel. A obra narra a vida no exilio de Jango, como era conhecido João Goulart, e sua família. O presidente foi deposto pela ditadura de 64 e teve que se exilar fora do país. Primeiramente no Uruguai e depois na Argentina.

Acompanhamos a vida exilada dessa família, tão longe de casa, por motivos tão tristes. Na América Latina vivíamos um período ditatorial, que acabou tomando o Uruguai e a Argentina poucos anos depois, transformando esses países em um perigo para os exilados. João Vicente consegue nos passar a sensação tão viva de isolamento que seu pai e sua mãe viveram, enquanto ele e sua irmã, crianças ainda, ele com 7 anos somente, faziam vários amiguinhos por onde passavam.

A obra é tão bem descrita que parece que estamos assistindo a um filme. São narrados os encontros com amigos ilustres do presidente, como Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, a cantora Maysa, o cineasta Glauber Rocha. É delicioso e extremamente enriquecedor ler sobre essas reuniões com seus amigos, alguns também na condição de exilados e outros que iam para visitar o amigo.  Jango pretendia fazer reformar de base no Brasil - agrária, educacional, política - e foi impedido por uma elite escravocrata, que não perde a chance, desde sempre, de manter seus privilégios. Penso que nosso país poderia ter sido diferente caso Jango tivesse se mantido no poder. Condenava os extremismos, até mesmo da esquerda. Em relação à isso, podemos ficar conhecendo as tensões envolvendo Jango e Brizola, seu cunhado. Enquanto Leonel apostava numa revolta armada contra o regime da ditadura, Jango acreditava em uma possível saída democrática.

Penso que ler essa obra em um momento político como o nosso seja maravilhoso, pois nos faz refletir sobre como a perda das liberdades individuais pode afetar a vida das pessoas. É necessário refletirmos acerca desse assunto, em nossa frágil democracia e o que governos autoritários podem ter como consequência. Poderíamos ter tido reformas de base e atualmente, o Brasil poderia ter menos desigualdade, visto que somos um dos países mais desiguais do mundo. São apenas reflexões, mas vale a pena pensar sobre.

É uma obra apaixonante, lírica, que conta os fatos com um carinho enorme, afinal de contas, é um filho falando sobre o pai. Os dois sempre foram muito companheiros e amigos. Pelos olhos de João Vicente, acabamos conhecendo um homem honesto, benevolente, um autêntico líder e estadista, mas sobretudo um pai, marido e pessoa sensacional. Acredito que a educação é uma ferramenta poderosíssima para transformar o mundo e ler nos ajuda a pensar criticamente, por isso recomendo fortemente a leitura e reflexão


domingo, 21 de outubro de 2018

A neblina do passado



Resenha
Livro: Neblina do passado
Autor: Leonardo Padura
Ano de lançamento: 2005
Nº de páginas: 320

Sou um pouco suspeita para falar de livros do Leonardo Padura, escritor cubano, ganhador de diversos prêmios de literatura internacionais, tais como Prêmio Hammet e Prêmio Princesa das Astúrias de Literatura. Esse é o sexto livro que leio do autor (você pode ler minhas outras resenhas aqui no blog). Sou apaixonada pela escrita, pelo universo criado por Padura, e, essencialmente, por Cuba.

Nesse livro, temos como protagonista Mário Conde, figura já carimbada em outros romances do autor, como na série Quatro Estações em Havana. A história se passa em 2003, quatorze anos depois de Conde largar sua função de investigador na polícia. Ele vive da compra e venda de livros usados, prática muito comum em Cuba. Mário descobre um verdadeiro tesouro: uma biblioteca com exemplares de livros raríssimos e valiosos. Ele leva seu sócio, Pombo, para participar do negócio com ele. Juntamente com os livros, o ex policial acha uma carta de uma cantora de bolero dos anos 50, Violeta del Rio, e passa a ficar obcecado para saber mais sobre a vida da mulher.

A partir desse momento, mergulhamos no passado junto com Conde. Numa era pré-revolução, com muitos cantores e cantoras de bolero, quando a música era farta na cidade, as casas de show fervilhavam, Cuba respirava música. Conde é melancólico por natureza. Por isso, fica entusiasmado para saber mais sobre essa Cuba , na época que nem ele era nascido.

O ex investigador e seu amigo se veem envolvidos em uma teia de assassinatos no tempo presente, que pode ter origens no passado. Pode um fato acontecido há tantos anos ter reflexos no tempo presente?

O título é sugestivo e nele se baseia todo o livro: a neblina do passado, uma nesga, uma parte do tempo que nos afeta ainda, que nos nubla de uma tal maneira que não conseguimos enxergar a verdade. Como uma nuvem que nos causa cegueira. É necessário enfrentar o tempo que passou de cabeça erguida, pois só assim, conseguiremos superá-lo.

A escrita de Padura é impecável: suas descrições de cenas de sexo, cenas de comida, cenas de violência, são todas recheadas de um lirismo, mas ao mesmo tempo, com tons coloquiais, que nos leva a acreditar que aquilo realmente aconteceu e que estamos vivenciando esses fatos junto com nosso protagonista. O amor de Conde para com seus amigos e sua companheira Tamara é algo retomando e bem trabalhado nesse volume.

Me senti nostálgica, como diria Renato Russo, nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi. Cuba é apaixonante, quente, sedutora, amistosa, acolhedora. Só fez aumentar em mim ainda mais a vontade de conhecer esse, nas falas do próprio Padura, nem céu socialista nem inferno da direita, mas sim um purgatório. Padura consegue ser crítico ao seu país, mas percebe-se um amor pela cidade, pela ilha, que escapa em cada poro do personagem principal. Afinal, não somos maniqueístas e isso o autor consegue trabalhar muito bem. Recomendo a leitura.

domingo, 7 de outubro de 2018

O amor segundo Buenos Aires


Resenha
Livro: O Amor Segundo Buenos Aires
Autor: Fernando Scheller
Ano de lançamento: 2016
Número de páginas: 288

O Amor Segundo Buenos Aires é, realmente, um livro sobre esse sentimento que nos move: o amor, em todas as suas formas e manifestações. O livro é o romance de estreia do jornalista Fernando Scheller.

Confesso que me interessei pelo livro a partir do título e pela foto de capa, que é magnífica. O titulo me chamou atenção pois tenho sonho de conhecer toda a América Latina, inclusive a cidade portenha, capital da Argentina. Não consigo pensar em cenário melhor para a história. Aliás, Buenos Aires não é somente pano de fundo da história. É uma das personagens principais. Mas vamos ao enredo.

Hugo, um brasileiro, decide se mudar para Buenos Aires por amor  à sua namorada, Leonor,  que tenta se reaproximar do pai argentino. Mas, logo no primeiro capítulo do livro, somos surpreendidos com o término desse relacionamento. O capitulo narra o momento que Hugo deixa Leonor, pois não enxerga mais reciprocidade naquela união, que se tornara unilateral. Nesse momento, já podemos observar uma inversão : é o homem que sofre pela mulher, não ao contrário. Ponto positivo já no começo do livro.
A partir disso, todos os capítulos são narrados por personagens diferentes , que falam sobre uma outra pessoa. Por exemplo, o primeiro capítulo se intitula: Leonor, segundo Hugo. Todos os capítulos obedecem à essa estrutura. Achei ótimo, pois nos apresenta a história sob variados pontos de vista.

Além de Hugo, temos Carol, uma comissária de bordo que nutria uma paixão platônica pelo Hugo; Eduardo, o melhor amigo de Hugo; sr Pedro, pai de Hugo. E Buenos Aires, que se torna um dos amores do nosso personagem principal, amor , esse sim, correspondido.

É importante destacar a presença de um casal homossexual na trama: Eduardo e Daniel. Um dos casais mais apaixonantes que já tive o prazer de acompanhar a história. O amor desse casal é retratado de maneira fluida, não sendo a sexualidade deles o que os determina, apenas mais um espectro, uma característica dos seres humanos Edu e Dani, mas sem deixar de abordar os preconceitos e dificuldades vividas pelos homossexuais em nossa sociedade.

O livro toca em temáticas sensíveis, como o aborto, de maneira não sensacionalista. Todos os personagens são bem reais, nada maniqueístas. Me identifiquei facilmente com todos eles, pois somos assim: seres não perfeitos, buscando conexões.
A obra é permeada por emoções. Muitas vezes me peguei rindo, chorando, pensando. Gosto de livros que me provoquem sensações, seja de que natureza for. Esse me provocou emoções diversas.

Acredito que o livro fale sobre conexões: aquelas que podemos encontrar com nossos amigos, ao longo da vida, que podem nos ajudar e estar do nosso lado muito mais que nossa família; aquela com nossos pais, onde alguns tem relacionamentos confusos, paradoxais, outros possuem uma relação mais leve , de puro amor; com nosso (s) amor(es), que conhecemos ao longo de nossa vida. Sobretudo, identificação com um lugar, o qual nos sentimos em casa. Esse lugar também pode ser uma pessoa. O capítulo final é homônimo do titulo do livro. Traz a cidade de Buenos Aires dissertando sobre o amor.

O autor descreve muito bem os locais da cidade portenha, aumentando muito a minha vontade de conhecer esse local. Todo capítulo vem com um mapa do lugar de Buenos Aires importante para o personagem em questão.

A obra fala sobre amor em todas as suas formas, manifestações, pluralidade existente. Em tempos de ódio, é melhor andar amado. Recomendo a leitura!

“Se você já amou demais
Se acredita que todo amor vale a pena
Esse livro é para você.”

domingo, 23 de setembro de 2018

O conto da Aia


Resenha
Livro: O conto da Aia
Autora: Margaret Atwood
Ano de lançamento: 1985
Número de páginas: 366

Margaret Atwood é uma escritora canadense de 78 anos que já escreveu romances, ensaios, poesias, contos e histórias em quadrinho. Ganhadora de vários prêmios internacionais, e está na calçada da fama do Canadá, em Toronto.
O livro O conto da Aia, de nome original The Handmand’s Tale, foi adaptado para o cinema na década de 90 e ganhou uma adaptação mais recente na forma de série de tv, produzida pela Hulu, streaming que não chegou ao Brasil ainda, concorrente da Netflix. É exibida no Brasil pela Paramount. Já tem duas temporadas e a terceira está confirmada.

A obra fala sobre um futuro distópico, onde o presidente dos Estados Unidos sofre um golpe por parte de um grupo religioso fazendo com que o país se torne uma teocracia, baseando suas leis na bíblia, passando a se chamar Gilead.

Nesse novo país, as mulheres não têm direito à nada: nome próprio, ler, escrever, trabalhar, sair de casa. Por conta de desastres ambientais, a maior parte das mulheres não consegue ter filhos. São divididas em castas: as tias (responsáveis por educarem as futuras reprodutoras da nação); as esposas, que se vestem de azul e por não conseguirem cumprir com seu papel na sociedade, são obrigadas a tolerar a presença de uma aia em sua casa; as Marthas, que se vestem de verde, uma espécie de governanta da casa dos oficiais; e finalmente as Aias. As Aias, que se vestem de vermelho, são mulheres que ainda são férteis e utilizadas como receptáculos, meros úteros de duas pernas, para ter filhos para os comandantes. Os comandantes são o que conhecemos hoje como governadores, prefeitos etc.

A história é narrada por Offred. Reparem no nome: Of (significa “de”) mais o nome a quem essas mulheres pertenciam. A Offred pertencia ao comandante Fred. As mulheres não possuíam mais seu nome passado, destituídas do que nos diferencia, elas são simplesmente úteros, cuja função é a reprodução. Quando uma mulher muda de casa, outra se torna Offred e assim por diante.

Todo mês no período fértil as Aias são estupradas pelos comandantes, num ritual bizarro. A esposa participa desse ritual. Confesso que as descrições desse processo me deixaram nauseadas.

Offred ainda consegue se lembrar de como era antes desse regime teocrático se instalar. Ela tinha uma família, uma filha e um marido e acaba sendo separada de todos que ama. Mas ela possui algo que ninguém consegue remover: a sua memória, suas lembranças. É através do seu pensamento que a protagonista consegue se manter viva, como um traço de realidade no bálsamo de tristeza, irracionalidade, que a cerca. Isso que a faz manter-se viva e ao mesmo tempo, acaba gerando angústia, pois ela se recorda como era ser mulher naquela sociedade. Necessitamos permanecer vigilantes aos nossos direitos, sempre, pois de uma hora para outra, eles podem ser retirados.
A justificativa que se dá para o cerceamento das mulheres é bíblica e cercada de protecionismo. Os homens dizem estar protegendo as mulheres de toda aquela liberdade que havia sido conquistada e mal utilizada.

Aliás, o livro como um todo me deixou enojada. Por se tratar de uma ficção, uma distopia, carrega um quê de profecia. Como não traçar paralelos com a realidade em que vivemos? Algum dia não fomos tratadas como meros receptáculos pelo Estado? Acompanhamos a discussão sobre descriminalização do aborto recentemente. Até mesmo nos casos em que há garantia de aborto legalizado no Brasil, a mulher encontra dificuldades para consegui fazê-lo. No outro extremo, observamos a proposta de esterilização compulsória das mulheres mais pobres, negando-as o direito de planejar suas vidas, construir suas famílias. Em que momento da história recente tivemos nossos plenos direitos garantidos? A nossa sociedade é machista e por isso, nós, mulheres, somos vistas como meros objetos criados para a satisfação do homem.

É um livro amargo, difícil de digerir, impossível esquecer. Acredito que essa seja uma das funções da literatura: incomodar, tocar na ferida, machucar. Por vezes, precisei parar para respirar ao ler algumas passagens do livro. Mas, não podemos perder a esperança de que, em algum dia, consigamos construir uma sociedade mais justa e mais igualitária para todas e todos. Por isso, fecho a resenha com esse trecho abaixo:


“Sigo adiante esta história triste e faminta e sórdida, esta história trôpega e mutilada, porque afinal, quero que você a ouça... Pelo fato de estar lhe contando alguma coisa, estou pelo menos acreditando em você... Por que estou contando está história para você, desejando sua existência, logo você existe.”

domingo, 9 de setembro de 2018

Lituma nos Andes


Resenha
Livro: Lituma nos Andes
Autor: Mario Vargas Llosa
Ano de lançamento: 1993
Número de páginas: 272

Mario Vargas Llosa é conhecido por não ter papas na língua e falar o que pensa. Suas falas são sempre polêmicas e confesso que esse foi o motivo pelo qual eu atrasava a leitura dos seus livros. Foi ganhador do prêmio Nobel de literatura em 2010. Concorreu à presidência no Peru nos anos 90, tendo sido derrotado por Fujimori. É no meio dessa efervescência política que Llosa publica Lituma nos Andes.

O livro fala sobre dois policiais que foram levados à Nacco, cidade situada na altitude Andina, que só conseguia sustentar sua existência graças à construção de uma estrada que atravessaria os Andes. Os funcionários da lei foram chamados pois três pessoas desapareceram, não tendo sido achados seus corpos. Eles foram para os Andes investigar essas mortes.

Acompanhamos a investigação sob o ponto de vista , na maior parte das vezes, de Lituma. Lituma é um cidadão de Piura, cidade urbanizada e é sob essa ótica que ele analisa a vida cotidiana dos moradores da montanha, chamados de serranos. Ele é um personagem preconceituoso em relação à população local, tratando-os como atrasados, movidos pelo mistiscismo, violentos, enquanto exalta a civilidade e urbanidade de quem vive na costa. Já é de se imaginar que o personagem que dá nome ao livro não desperte muita simpatia nos moradores, em sua maior parte indígenas, que tratam o investigador com desconfiança.

Tomas é um cabo de polícia, braço direito de Lituma. Tomasito e Lituma passam as noites conversando sobre o amor perdido do cabo, Mercedes. Essas passagens são responsáveis pelos respiros de amor, tão necessários em meio ao caos violento do cotidiano diário das montanhas, relatado por Lituma. São diálogos repletos de lirismo por parte de Tomas, que nunca superou a perda de seu amor, mantendo esperança de um dia reencontrá-la.

Também é muito presente no livro o grupo Sendero Luminoso, que teve origem em um movimento criado por intelectuais de orientação marxista, que foi responsável por alguns ataques na década de 70 e 80 no Peru. No livro, esse grupo acaba sendo demonizado, retratando os indivíduos pertencentes ao movimento como animalizados, cegos. Não sei até que ponto isso corresponde à verdade. Não me aprofundei no tema de maneira a contrapor ou corroborar com essa visão.

São retratadas no livro as crenças dos indígenas das montanhas. É muito rico sob o ponto de vista cultural, nos fazendo viajar através do mundo dos pishtacos, apus, entre outras figuras míticas das montanhas. A descrição dos Andes é riquíssima, levando o leitor a sentir que estava realmente inserido no cenário em questão.

Quanto ao ritmo de escrita, o autor mistura temporalidades sem divisão gráfica, o que pode parecer um pouco confuso à primeira vista, mas que traz certa dinâmica ao texto, sendo fácil se acostumar ao ritmo peculiar de escrita após algumas páginas lidas.

O ponto principal que o livro, em minha opinião, traz à discussão é a dicotomia entre civilização e barbárie. Onde começa nossa humanidade? Até onde somos capazes de ir para nos salvar? O que nos separa dos bárbaros? Essa divisão fica evidente na separação entre costeiros(os humanos, civilizados) e os serranos (atrasados, não humanos, bárbaros). Essa visão será desconstruída ao longo do livro, pois todos nós temos humanidade e barbárie em nosso coração. A maior parte das pessoas não é ruim ou boa cem por cento do tempo. Esse entrecruzamento será responsável por uma das grandes sacadas do livro.

Quanto ao final, assim como outros escritores latino-americanos, que faziam parte do boom latino americano, Llosa nos presenteia com um desfecho digno de realismo mágico. A construção da história se dá todo do ponto de vista da racionalidade, para ser contrariada ao final. Não posso detalhar mais, com risco de conter spoilers. Recomendo fortemente a leitura desse livro, pois o autor consegue transformar uma simples história policial em um delicioso romance. Boas leituras!

domingo, 26 de agosto de 2018

Guantánamo Boy


Resenha
Livro: Guantánamo Boy
Autora: Anna Perera
Ano de lançamento: 2009
Número de páginas: 309

Khalid Ahmed é um típico garoto inglês de 15 anos: vai para escola estudar, sai com amigos, paquera meninas, gosta de futebol e não se liga muito em assuntos de política. Adora mexer no computador, conversar, principalmente com seu primo Tariq, que vive no Paquistão. Apenas por um fato ele se diferencia do resto dos meninos do seu país: ele é muçulmano, com mãe turca e pai paquistanês. Depois do 11 de setembro, começa a sentir na pele a paranoia que se instalou contra o terrorismo no Ocidente. Muitas pessoas passavam na rua olhando para ele, com ojeriza, medo. Seu pai vivia dizendo: são tempos difíceis para os muçulmanos. Mas Khalid, como adolescente, acaba não dando muita importância à essas questões.

No feriado de Páscoa, Khalid viaja com a família para o Paquistão, para visitar seus parentes, por ocasião da morte da sua avó. No Paquistão, Khalid é sequestrado, pois é confundido com um terrorista da Al-Qaeda. A partir desse momento, é levado para uma prisão, onde é interrogado e torturado, sendo transferido posteriormente para Guantánamo, prisão americana que fica em Cuba.

É importante frisar que Khalid tinha apenas 15 anos na ocasião de sua prisão. Não cometeu nenhum crime, apenas era um garoto muçulmano que vivia no Ocidente. Podemos sentir na pele a angústia vivida por Khalid, consegui sentir a dor das torturas, da injustiça. Ainda um menino, sendo tratado de maneira desumana e injusta.
Podemos relacionar o assunto do livro com casos de xenofobia, que todos os dias enche os noticiários. Imigrantes sofrem preconceito e violência nos países que moram. É importante também reparar o emprego do pai e da mãe de Khalid. O pai trabalha há anos como ajudante de cozinha, ganhando pouco e a mãe é secretaria. Os dois, apesar de residirem há anos na Inglaterra, não conseguem ter acesso à empregos que ganhem um pouco mais. Na minha visão, por serem imigrantes.

O livro é ficcional, mas poderia facilmente ser confundido como baseado em fatos, visto a verossimilhança transmitida através do tema, super atual, e da descrição contundente de todo o ambiente. Os personagens são muito bem trabalhados e desenvolvidos. O enredo te envolve e a escrita da autora é fluida, apesar do tema pesado. Indico a leitura.


sábado, 18 de agosto de 2018

O sol na cabeça


Resenha
Livro: O sol na cabeça
Autor: Geovani Martins
Ano de lançamento: 2018
Número de páginas: 119

Geovani Martins é um escritor brasileiro de apenas 26 anos, nascido em Bangu, já morou na Rocinha e atualmente vive no Vidigal. Já trabalhou em diversos ofícios, como atendente de lanchonete, garçom em bufê infantil, barraca de praia e “homem-placa”. Participou da Festa Literária das Periferias, a Flup, teve alguns de seus contos publicados na revista setor X e foi convidado para a programação paralela da Flip. Por que eu fiz toda essa apresentação inicial do autor? Por que o fato de ser quem ele é- pobre, negro, morador de favela- é certamente a inspiração para os treze contos que compõem o livro.

O livro O sol na cabeça já teve seus direitos vendidos para virar filme e já foi comercializado para nove países diferentes. O que o torna tão especial? É um livro que possui treze contos, todos diferentes e sem ligação entre si, mas que giram em torno de uma temática principal: a vida nas periferias.

A obra impressiona pelo realismo e pela presença de muitas vozes. Nos contos onde o narrador é personagem, a linguagem é característica da juventude periférica, com gírias, muitas vezes locais, com traços de oralidade. Isso impressiona, parece que estamos escutando uma pessoa contar, tamanho o grau de realidade que esse tipo de escrita confere. Já nos contos onde o narrador é observador, a linguagem já é a da gramática normativa. Isso confere um extremo realismo aos contos, pois parecem que foram escritos por pessoas realmente diferentes, e você passa a acreditar naquelas histórias.

Percebam que usei as palavras realismo e realidade, por que é basicamente disso que os contos tratam.  A realidade da vida nas periferias brasileiras, mais especificamente no Rio de Janeiro. Mas ao invés daquela visão que muitos, que não vivem a realidade de uma favela tem, estereotipada, conseguimos enxergar as cores, sons, e beleza na vida daquelas pessoas que são tão maltratadas pelo Estado, seja pelas mãos da polícia , dos bandidos ou pela ausência de políticas públicas.
O trecho abaixo é apenas um dos inúmeros que evidenciam a desigualdade presente no Rio de Janeiro:

“ Era tão bom tudo aquilo, que queria continuar trabalhando pra sempre, pensava isso enquanto estava em casa; mas, quando chegava nos condomínios, pegava o cano que usava pra recolher as bolinhas de tênis, pisava na quadra, sentia o sol esquentando na minha cabeça, a obrigação de servir gente que nem olhava na minha cara, nessas horas eu queria nunca mais depender de ninguém nessa vida.

O Brasil é um país que foi formado e carrega até hoje traços de seu passado colonial, com tradições escravocratas, onde o negro era e ainda é tratado como não gente, pela elite e, muitas vezes, pela classe média. Isso fica bem explicitado na obra, com o medo no olhar da classe média quando um menino negro passa, o desprezo e o nojo dirigidos aos moradores da periferia, os não gente.

Também podemos observar a poesia do cotidiano, em vários contos, pois na pobreza e na periferia não existe somente tristeza, existem vários momentos de alegria. No conto da velhinha candomblecista, pude sentir o aconchego daquele centro espírita, o carinho das crianças para com ela.

Um ponto muito importante a ser observado, que reflete a realidade das periferias: quase nenhum personagem tem pai, é a mãe que cria. O pai fugiu, foi embora, ou quando muito, anda sempre bêbado. Isso encontra eco na realidade, pois a maior parte das famílias das classes mais baixa é chefiada por mulheres. A resistência, a força e fibra dessas mulheres fica homenageada nessa obra.

Minha primeira experiência com a leitura de um livro completo de literatura marginal e só tenho elogios à obra. Meu conselho é que fiquemos de olho no que mais o Geovani irá produzir, pois o autor promete, visto esse livro ser o seu de estreia. Recomendo muito a leitura do livro por todos os motivos que foram falados. A leitura nos faz conhecer realidades que não são nossas e nos faz praticar empatia. Acho que essa é uma das maiores contribuições da literatura: a prática desse sentimento tão importante nos dias atuais. Boa leitura!

“Tive que ouvir que tava errado por falar pro ceis
Que seu povo me lembra Hitler
Carregam tradições escravocratas
E não aguentam ver um preto líder”
Música Junho de 94, Djonga

domingo, 5 de agosto de 2018

Todo dia


Resenha
Livro: Todo Dia
Autor: David Levithan
Ano de lançamento: 2012
Número de páginas: 280

Todos os dias , A acorda em um corpo diferente. Tem 16 anos e toda sua vida foi assim. Uns dias acorda no corpo de meninas que gostam de meninos, outros no corpo de meninas que gostam de meninas, meninos que gostam de meninos , no corpo de pessoas brancas, negras, pobres, ricas, enfim, a única certeza é que a pessoa terá a mesma idade de A. Quando A era pequeno, já havia percebido que tinha famílias diferentes a cada dia, mas achava que isso fosse o normal para todos. Conforme foi crescendo, foi começando a entender sua condição.

Imagine não possuir corpo, somente uma essência? Não possuir gênero, família, amigos? Assim vive A. Não se importa muito com a situação. Já desistiu de tentar entendê-la. Vive conforme suas regras: tentar não se apegar e tentar não interferir tanto na vida da pessoa que o abriga, afinal, ele é apenas um hospedeiro por 24 horas. Mas tudo isso muda quando ele ocupa o corpo de um garoto chamado Justin e se apaixona por sua namorada, Rhiannon. A partir desse momento, A muda suas regras e passa a querer viver o amor ao lado dessa menina por quem está apaixonada (o).

A premissa do livro por si só já chama atenção, pois é muito diferente de tudo que estamos acostumados a ler. Acredito que a principal mensagem do livro seja sobre empatia. Será que somos capazes de amar alguém que muda de corpo todos os dias? Afinal, amamos corpos ou essências? Você continuaria a amar seu marido, esposa, namorada(o) se isso ocorresse? É interessante colocar esse debate em questão. 

Podemos estendê-lo para discutir identidade de gênero e orientação sexual. Identidade de gênero é como você se identifica no mundo, de acordo com os papeis de gênero estabelecidos na sociedade que você vive. Homem, mulher, não binário. Já orientação sexual diz respeito à quem você se atrai, por quem você sente carinho.  A diferença entre esses dois conceitos fica bem exemplificada nas situações do livro.

A já acordou no corpo de pessoas suicidas, drogadas. Uma diversidade enorme de vidas. Os adolescentes que lerem o livro vão se identificar, provavelmente, com algumas das situações vividas pelo(a) protagonista. Afinal, são fatos que fazem parte da vida da maior parte das pessoas de 16 anos. Nisso, o livro cumpre um papel crucial: de fazer o leitor se colocar no lugar das pessoas, praticando a identificação emocional com o outro, que não é você. O autor trabalha esses problemas cotidianos de maneira não sensacionalista e panfletária, a meu ver, uma abordagem correta dos temas. O sentimento juvenil de não se encaixar em lugar nenhum, de não se sentir completo, de construção de identidade, é bem representado pelas várias vidas do personagem.

Rhiannon e A irão viver um romance intenso e arrebatador. Mas será que Rhiannon consegue amar além da capa, além da casca do corpo? Ela é uma personagem nada maniqueísta, possui muitas camadas e é dotada de realidade, pois somos seres humanos, passíveis de erros e contradições. Mais um ponto positivo para o romance.

Por tudo que foi explicitado acima, recomendo fortemente a leitura do romance. É relativamente curto, perfeito para jovens adultos e adolescentes, especialmente esses últimos, que estão em constante processo de construção de identidades. Aliás, quem não está se construindo e reconstruindo o tempo inteiro? Livro gostoso de ler, fluido, dinâmico, e que nos faz refletir sobre questões sérias e urgentes, de maneira leve. Acredito que a mensagem principal, dentre tantas outras, seja: pratiquemos empatia! Só ela nos salva! Deixo vocês com uma citação que achei extremamente marcante.


“Não sei como isso funciona, nem o porquê. Parei de tentar entender há muito tempo. Nunca vou compreender, não mais do que qualquer pessoa normal entenderá a própria existência. Depois de algum tempo é preciso aceitar o fato de que você simplesmente existe. ”

domingo, 22 de julho de 2018

O fim do homem soviético


Resenha
Livro: O fim do homem soviético
Autora: Svetlana Aleksiévitch
Ano de lançamento: 2013

Não costumo fazer resenhas de livros que não sejam literários. Gosto bastante de ler livros reportagem, feitos por jornalistas. Apesar de não ser costume resenhá-los, essa presente obra se torna a primeira exceção nessa minha regra.

O livro traz entrevistas organizadas pela autora feitas do ano de 1991 até 2012. Ela divide o livro em duas partes. Uma vai de 1991 até 2001 e a segunda parte de 2001 até 2012. São colhidos relatos de pessoas comuns, que viveram nos tempos da União Soviética e como o fim dela afetou suas trajetórias. Imagine passar toda a sua vida vivendo numa nação e, de um dia para o outro, essa nação não existir mais? Essa é a essência do livro.

A autora consegue capturar essa sensação de desolamento vivida pelas pessoas. A maior parte delas que viveram sob o antigo regime, tem saudades daquela época. Eles relatam que para a pessoa simples, a vida era boa. Todos tinham direito à educação, saúde, coisas essenciais eram gratuitas. Podemos acompanhar o relato de pessoas que foram presas na época de Stalin e, mesmo essas pessoas, lembram com saudade do passado.

Em 1991 chega a tão anunciada “liberdade”, com a perestroika e glasnot. Mas na visão das pessoas entrevistadas, não houve liberdade. A não ser aquela liberdade capitalista, de consumir o que você quiser, desde que tenha o dinheiro disponível. Mais do que o fim de uma era, de um regime, essa abertura marca o fim do homo sovieticus.

É muito interessante observar a diferença dos depoimentos de filhos e pais/avós. Enquanto os mais velhos se interessam muito por leitura, pois na URSS todos tinham direito à educação, todos liam, desde a mais tenra infância. Já os mais novos têm seus deuses na música, no glamour, não se interessam muito por leitura como seus antepassados. Muda-se a lógica de vida. Antes, era necessária pouca coisa material para ser feliz. Hoje, é necessário ter muito dinheiro para conseguir chegar às suas aspirações, ser se torna ter.

As passagens que nos contam como a cozinha era importante para a família da URSS são lindíssimas, dotadas de poesia do cotidiano. Era nesse cômodo familiar que havia as conversas proibidas nos outros locais da casa, era lá que criticavam o regime, riam, comiam.

Além de todo o lirismo que consegue ser extraído desses relatos de pessoas comuns, há também muita tristeza e violência. Nas passagens das pessoas que foram presas, passaram anos em campos de trabalho forçado, tendo sido denunciados muitas vezes por um vizinho, um amigo. Se você fosse denunciado naquela época, fazendo qualquer coisa contrária ao regime, era prisão na certa.

Podemos sentir também como a atual Rússia é cruel, tanto com os russos mais simples quanto para os imigrantes. Pessoas com nível superior, como engenheiros, contadores, professores, trabalhando como taxistas, vendedores. Isso tudo é muito perverso. Além do fato da Rússia em sua superfície esbanjar opulência, enquanto em seu subsolo legitima espancamento de imigrantes, homossexuais, mulheres.

Acredito que esse livro deva ser lido em qualquer contexto histórico, pois a autora consegue trazer a individualidade das histórias esquecidas pelos livros de histórias ao mesmo tempo que unifica esses relatos em torno de características comuns. Dá voz aos esquecidos. Uma obra belíssima, onde a realidade se torna poesia.   Quando ouvimos o outro, estamos praticando empatia. Sentimento tão necessário atualmente.

2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...