domingo, 8 de dezembro de 2019

Ponciá Vicêncio


Resenha
Livro: Ponciá Vicêncio
Autora: Conceição Evaristo
Ano: 2017
Editora: Pallas
Número de páginas: 120

Conceição Evaristo, não escreve, faz “escrevivência”. Mulher negra, nascida na periferia de Minas Gerais, se formou adulta como professora de Escola Normal, e passou em um concurso para o magistério no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura pela PUC e doutora pela Universidade Federal Fluminense. Disputou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, que perdeu para o jornalista Cacá Diegues. Sua campanha para a Academia foi impulsionada pela internet e teve amplo apoio popular. Apesar disso, não ocupou a cadeira, em uma Academia majoritariamente composta por homens brancos(atualmente há apenas um homem negro e cinco mulheres brancas contra trinta e três homens brancos na Academia). Autora de inúmeros contos e poesias, tem em Ponciá Vicêncio seu romance de estreia.

A obra narra a vida de Ponciá Vicêncio. Nascida em um quilombo, neta de um negro que foi escravizado, Ponciá cresceu no interior com sua família, pai, mãe e irmão. Não conheceu muito o avô, que morre quando ela era pequena, mas todas as pessoas afirmam que ela receberá um dia a herança dele. Ponciá e sua mãe, Maria Vicêncio, fazem objetos de barro para vender. Seu pai e irmão trabalham na terra dos brancos. Após a morte do pai, Ponciá decide se mudar e ir tentar a vida na cidade grande.

Ponciá leva uma vida difícil na cidade e vive mais nas suas memórias do que no momento presente. A história é narrada por um narrador em terceira pessoa, observador, e constituída de flashes, que não seguem uma ordem cronológica. 

É interessante notar que a história trabalha com as memórias, que podem ser encaradas como única e exclusivamente do ponto de vista individual como serem tratadas como a memória da história do povo negro. Quando é contado no livro que o sobrenome Vicêncio vem do coronel Vicêncio, que colocava seu sobrenome nos escravos, isso não diz respeito apenas à esse caso individual, mas reflete esse apagamento da história dos negros que foram escravizados. Ponciá tenta o tempo inteiro recuperar essa memória, perdida. Quando Ponciá relata que o pai e irmão continuam a trabalhar na terra dos brancos, mesmo o pai tendo sido de ventre livre, e não recebem salário, sendo as relações no quilombo de troca de materiais, isso diz muito sobre a condição do negro no Brasil pós abolição. Não houve uma libertação de fato com a assinatura da Lei Áurea e não igualdade ainda em nosso país entre negros e brancos, visto que os negros são mortos pelo braço armado do Estado, são os que ganham menos, acessam menos às Universidade. Apesar disso, o mito da democracia racial se faz presente. É interessante, ainda levando em consideração esse ponto, quando seu irmão Luandi chega na cidade e vê soldados negros, exclama: nunca vi negro ocupar posição de poder. Depois, com o tempo, ela vai desconstruindo essa visão de que o soldado ocupa alguma posição de superioridade , e descobre que ele é apenas mais um subalterno com uma ilusão.

O modo de contar a história me fez lembrar de outras escritoras negras, como Maria Firmino dos Reis e Carolina Maria de Jesus. Conceição tem na sua prosa, poesia. Dotada de lirismo que consegue transformar em beleza até mesmo o movimento da folha de uma árvore.

Dói no âmago , na alma, ler certas passagens que jogam em nossa cara as chagas do racismo pungente e institucional que insistem em fazer parte do cotidiano do Brasil, último país das Américas a abolir a Escravidão. As dores de uma mulher negra no seu cotidiano, tudo que ela tem de enfrentar para conseguir viver de maneira digna, evidenciam nossas injustiças diárias. É interessante destacar que apesar de Conceição ser uma autora pós moderna, ela também toca profundamente nas questões das desigualdades, das estruturas da sociedade, o que faz com que sua escrita seja dotada de originalidade. Depois de tudo isso, só consigo pensar que quem saiu perdendo a oportunidade de imortalizar uma escritora tão completa foi a Academia Brasileira de Letras. Azar o deles, sorte a nossa, pois ficamos conhecendo essa autora de qualidade inigualável. Recomendo fortemente a leitura!


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