Resenha
Livro: Ponciá Vicêncio
Autora: Conceição
Evaristo
Ano: 2017
Editora: Pallas
Número de páginas: 120
Conceição Evaristo, não
escreve, faz “escrevivência”. Mulher negra, nascida na periferia de Minas
Gerais, se formou adulta como professora de Escola Normal, e passou em um
concurso para o magistério no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura pela PUC e
doutora pela Universidade Federal Fluminense. Disputou a cadeira 7 da Academia
Brasileira de Letras, que perdeu para o jornalista Cacá Diegues. Sua campanha
para a Academia foi impulsionada pela internet e teve amplo apoio popular.
Apesar disso, não ocupou a cadeira, em uma Academia majoritariamente composta por
homens brancos(atualmente há apenas um homem negro e cinco mulheres brancas
contra trinta e três homens brancos na Academia). Autora de inúmeros contos e
poesias, tem em Ponciá Vicêncio seu romance de estreia.
A obra narra a vida de
Ponciá Vicêncio. Nascida em um quilombo, neta de um negro que foi escravizado,
Ponciá cresceu no interior com sua família, pai, mãe e irmão. Não conheceu
muito o avô, que morre quando ela era pequena, mas todas as pessoas afirmam que
ela receberá um dia a herança dele. Ponciá e sua mãe, Maria Vicêncio, fazem
objetos de barro para vender. Seu pai e irmão trabalham na terra dos brancos.
Após a morte do pai, Ponciá decide se mudar e ir tentar a vida na cidade
grande.
Ponciá leva uma vida
difícil na cidade e vive mais nas suas memórias do que no momento presente. A
história é narrada por um narrador em terceira pessoa, observador, e
constituída de flashes, que não seguem uma ordem cronológica.
É interessante notar que
a história trabalha com as memórias, que podem ser encaradas como única e
exclusivamente do ponto de vista individual como serem tratadas como a memória
da história do povo negro. Quando é contado no livro que o sobrenome Vicêncio
vem do coronel Vicêncio, que colocava seu sobrenome nos escravos, isso não diz
respeito apenas à esse caso individual, mas reflete esse apagamento da história
dos negros que foram escravizados. Ponciá tenta o tempo inteiro recuperar essa
memória, perdida. Quando Ponciá relata que o pai e irmão continuam a trabalhar
na terra dos brancos, mesmo o pai tendo sido de ventre livre, e não recebem
salário, sendo as relações no quilombo de troca de materiais, isso diz muito
sobre a condição do negro no Brasil pós abolição. Não houve uma libertação de
fato com a assinatura da Lei Áurea e não igualdade ainda em nosso país entre
negros e brancos, visto que os negros são mortos pelo braço armado do Estado,
são os que ganham menos, acessam menos às Universidade. Apesar disso, o mito da
democracia racial se faz presente. É interessante, ainda levando em consideração
esse ponto, quando seu irmão Luandi chega na cidade e vê soldados negros,
exclama: nunca vi negro ocupar posição de poder. Depois, com o tempo, ela vai
desconstruindo essa visão de que o soldado ocupa alguma posição de
superioridade , e descobre que ele é apenas mais um subalterno com uma ilusão.
O modo de contar a
história me fez lembrar de outras escritoras negras, como Maria Firmino dos
Reis e Carolina Maria de Jesus. Conceição tem na sua prosa, poesia. Dotada de
lirismo que consegue transformar em beleza até mesmo o movimento da folha de
uma árvore.
Dói no âmago , na alma,
ler certas passagens que jogam em nossa cara as chagas do racismo pungente e
institucional que insistem em fazer parte do cotidiano do Brasil, último país
das Américas a abolir a Escravidão. As dores de uma mulher negra no seu
cotidiano, tudo que ela tem de enfrentar para conseguir viver de maneira digna,
evidenciam nossas injustiças diárias. É interessante destacar que apesar de
Conceição ser uma autora pós moderna, ela também toca profundamente nas
questões das desigualdades, das estruturas da sociedade, o que faz com que sua
escrita seja dotada de originalidade. Depois de tudo isso, só consigo pensar
que quem saiu perdendo a oportunidade de imortalizar uma escritora tão completa
foi a Academia Brasileira de Letras. Azar o deles, sorte a nossa, pois ficamos
conhecendo essa autora de qualidade inigualável. Recomendo fortemente a
leitura!
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