domingo, 27 de maio de 2018

A confissão da leoa


Resenha
Livro: A confissão da leoa
Autor: Mia Couto
Ano de lançamento : 2012

Tenho feito um esforço para fazer leituras de obras que não sejam oriundas dos locais hegemônicos de produção cultural: Estados Unidos e Europa. Estou procurando livros de autores provenientes do continente africano, asiático, américa latina, nessa tentativa de conhecer e valorizar o contra hegemônico. Foi em uma dessas buscas que conheci Mia Couto, escritor moçambicano e também biólogo, ganhador de muitos prêmios literários, dentre eles o Prêmio Neustadt, tendo sido  somente ele e João Cabral de Melo Neto os únicos escritores de língua portuguesa a recebê-lo.

A confissão da leoa é um livro que aborda um tema muito urgente na sociedade moçambicana, e que encontra ecos na nossa sociedade brasileira também: a posição da mulher. O autor começa o livro com a seguinte frase: Deus já foi mulher.  Antes de Deus ser chamado de Nungu, segundo  lenda da criação do universo,  o Senhor do Universo, ele era mãe. A mulher já ocupou, outrora, uma posição de superioridade na sociedade.
O enredo do livro é simples e foi inspirado em uma situação que o próprio Mia couto vivenciou enquanto biólogo: uma aldeia começa a ser atacada por leões, que atacam somente mulheres; para combater os animais, é chamado um caçador, Arcanjo Baleiro. O livro é narrado por duas pessoas: o caçador e Mariamar, uma moradora da aldeia de Kulumani que acabou de perder sua irmã, Silência, morta pelos leões.

“Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.”

Nesse trecho, podemos perceber uma metáfora: os leões representam as mulheres e os caçadores, os homens. Essa não é a única metáfora do livro, que é simplesmente recheado delas. Mia Couto possui uma prosa belíssima, por muitas vezes poética, emocionante, mágica.

O livro narra a vida de todas as mulheres, que já nascem mortas. Uma fala muito marcante é de Hanifa, mãe de Mariamar, quando questionada sobre a paz que será obtida pela morte dos lões:

“ Qual paz? Talvez para eles, os homens-disse- Por que nós, mulheres, todas as manhãs continuamos a despertar para uma antiga e infindável guerra.”

As mulheres não são seres possuidores de direitos naquela sociedade: são sempre representadas por seus maridos, pais, parentes. Muitas das vezes, esses próprios atores são responsáveis pela vida de desgraça que as mulheres levam, abusando e oprimindo as mesmas.. Não tem a possibilidade de fala, somente levam uma vida de servidão. Lá em Moçambique,  muitas mulheres trabalham em casa, nas lavouras, e esse tipo de trabalho é visto como uma ajuda ao marido, não sendo valorizado.

Além do ataque de leões, existem casos de mulheres que estavam sendo estupradas, e essas situações não encontravam repercussão na aldeia, visto que se tratava, apenas de mulheres, que nem seres humanos são, servindo somente para a servidão e procriação.

Mas , em contrapartida, temos no livro, -pelo ponto de vista das mulheres representadas nele: Mariamar; Naftalinda, a esposa do administrador, que se rebela contra toda a situação da mulher; Hanifa, que conhece a situação, mas não consegue se revoltar- possibilidades de reflexão belíssimas e tocantes. Couto consegue representar esse eu lírico feminino de maneira belíssima: conseguimos sentir a sofreguidão enfrentada por essas mulheres, que antes de se tornarem não pessoas, eram deusas, que tudo perderam.  Como mulher, vivendo no Brasil, país extremamente machista e desigual para as mulheres, consegui me identificar e sentir a dor sentida por aquelas mulheres, doeu muito em mim.

Arcanjo, apesar de ser homem, retrata as mulheres sob um ponto de vista positivo: como geradoras, seres humanos, dotados de ancestralidade, divindade. Ele tem uma fala incrível, ao final do livro, que trago aqui:

“Naquele momento estou rodeado de deusas. De um lado e do outro lado da despedida, naquele rasgar de mundos, são mulheres que costuram a minha rasgada história.”

Ao final do livro temos a confissão da leoa: nós, como mulheres, somos leoas, temos que enfrentar toda essa sociedade que nos odeia, quando confessamos, quando gritamos a opressão que sofremos, somos taxadas de loucas. É isso que o livro visa trazer: mostrar a história sob o ponto de vista das leoas, todo seu sofrimento e possibilidades de resistência e mudanças. A mensagem ao final é, que se nos unirmos, temos a potencialidade de transformar, minimamente, a sociedade em que vivemos. Leitura essencial !!!!

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