Resenha
Livro: A confissão da leoa
Autor: Mia Couto
Ano de lançamento : 2012
Tenho feito um esforço para fazer leituras de obras que
não sejam oriundas dos locais hegemônicos de produção cultural: Estados Unidos
e Europa. Estou procurando livros de autores provenientes do continente
africano, asiático, américa latina, nessa tentativa de conhecer e valorizar o
contra hegemônico. Foi em uma dessas buscas que conheci Mia Couto, escritor
moçambicano e também biólogo, ganhador de muitos prêmios literários, dentre
eles o Prêmio Neustadt, tendo sido
somente ele e João Cabral de Melo Neto os únicos escritores de língua
portuguesa a recebê-lo.
A confissão da leoa é um livro que aborda um tema muito
urgente na sociedade moçambicana, e que encontra ecos na nossa sociedade
brasileira também: a posição da mulher. O autor começa o livro com a seguinte
frase: Deus já foi mulher. Antes de Deus
ser chamado de Nungu, segundo lenda da
criação do universo, o Senhor do
Universo, ele era mãe. A mulher já ocupou, outrora, uma posição de
superioridade na sociedade.
O enredo do livro é simples e foi inspirado em uma
situação que o próprio Mia couto vivenciou enquanto biólogo: uma aldeia começa
a ser atacada por leões, que atacam somente mulheres; para combater os animais,
é chamado um caçador, Arcanjo Baleiro. O livro é narrado por duas pessoas: o
caçador e Mariamar, uma moradora da aldeia de Kulumani que acabou de perder sua
irmã, Silência, morta pelos leões.
“Até
que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os
heróis das narrativas de caça.”
Nesse trecho, podemos perceber uma metáfora: os leões
representam as mulheres e os caçadores, os homens. Essa não é a única metáfora
do livro, que é simplesmente recheado delas. Mia Couto possui uma prosa
belíssima, por muitas vezes poética, emocionante, mágica.
O livro narra a vida de todas as mulheres, que já
nascem mortas. Uma fala muito marcante é de Hanifa, mãe de Mariamar, quando
questionada sobre a paz que será obtida pela morte dos lões:
“
Qual paz? Talvez para eles, os homens-disse- Por que nós, mulheres, todas as
manhãs continuamos a despertar para uma antiga e infindável guerra.”
As mulheres não são seres possuidores de direitos
naquela sociedade: são sempre representadas por seus maridos, pais, parentes.
Muitas das vezes, esses próprios atores são responsáveis pela vida de desgraça
que as mulheres levam, abusando e oprimindo as mesmas.. Não tem a possibilidade
de fala, somente levam uma vida de servidão. Lá em Moçambique, muitas mulheres trabalham em casa, nas
lavouras, e esse tipo de trabalho é visto como uma ajuda ao marido, não sendo
valorizado.
Além do ataque de leões, existem casos de mulheres que
estavam sendo estupradas, e essas situações não encontravam repercussão na
aldeia, visto que se tratava, apenas de mulheres, que nem seres humanos são,
servindo somente para a servidão e procriação.
Mas , em contrapartida, temos no livro, -pelo ponto de
vista das mulheres representadas nele: Mariamar; Naftalinda, a esposa do
administrador, que se rebela contra toda a situação da mulher; Hanifa, que
conhece a situação, mas não consegue se revoltar- possibilidades de reflexão
belíssimas e tocantes. Couto consegue representar esse eu lírico feminino de
maneira belíssima: conseguimos sentir a sofreguidão enfrentada por essas
mulheres, que antes de se tornarem não pessoas, eram deusas, que tudo
perderam. Como mulher, vivendo no
Brasil, país extremamente machista e desigual para as mulheres, consegui me
identificar e sentir a dor sentida por aquelas mulheres, doeu muito em mim.
Arcanjo, apesar de ser homem, retrata as mulheres sob
um ponto de vista positivo: como geradoras, seres humanos, dotados de
ancestralidade, divindade. Ele tem uma fala incrível, ao final do livro, que
trago aqui:
“Naquele
momento estou rodeado de deusas. De um lado e do outro lado da despedida,
naquele rasgar de mundos, são mulheres que costuram a minha rasgada história.”
Ao final do livro temos a confissão da leoa: nós, como
mulheres, somos leoas, temos que enfrentar toda essa sociedade que nos odeia,
quando confessamos, quando gritamos a opressão que sofremos, somos taxadas de
loucas. É isso que o livro visa trazer: mostrar a história sob o ponto de vista
das leoas, todo seu sofrimento e possibilidades de resistência e mudanças. A
mensagem ao final é, que se nos unirmos, temos a potencialidade de transformar,
minimamente, a sociedade em que vivemos. Leitura essencial !!!!