Resenha
Livro: Vox
Autora: Christina Dalcher
Ano: 2018
Número de páginas: 320
Editora: Arqueiro
Imaginem um mundo onde as mulheres só podem
falar cem palavras por dia? Desde mulheres adultas até adolescentes e bebes
recém-nascidos, onde o controle do número de palavras faladas é feito através
de uma pulseira colocada no pulso dessas mulheres que as eletrocuta quando
falam a centésima primeira palavra do dia. Essa é a premissa básica do livro
Vox, escrito pela autora Christina Dalcher.
Esse futuro distópico, mas não muito distante,
ocorre apenas nos Estados Unidos, com a eleição de um presidente ultra conservador,
que foi precedido por um presidente negro. Qualquer semelhança com a realidade
não é mera coincidência. O livro foca-se na historia de Jean, uma ex
neurolinguista e professora universitária, que, assim como todas as mulheres,
perde seu direito à voz, ao trabalho, à possuir conta, acesso à internet, de
ser alguém independente de sua família. Acompanhamos a rotina dessa mulher, que
é casada e possui quatro filhos, uma menina e três meninos. Ela vive sua vida
até que o irmão do presidente sofre um acidente e fica com um problema na
região do cérebro responsável pela fala. Como ela é uma das únicas
especialistas nesse assunto no país, o governo abre uma exceção e contrata ela
para recuperar a fala do irmão do governante. Ela aceita, não sem antes relutar,
mas exige coisas em troca, como tirar a pulseira de sua filha de cinco anos
durante o processo de pesquisa.
O livro me lembrou muito outro livro de futuro
distópico , O conta da Aia. Nele , as mulheres também perdem o direito às suas
escolhas, se transformando em meros receptáculos de crianças. Esse livro, da
autora Margaret Atwood, atualmente possui uma adaptação para a tv, na forma de
um seriado, que já conta com duas temporadas. Como o livro foi escrito na
década de 80, o seriado traz a história para os dias atuais. E qual não foi
minha surpresa ao constatar que Vox se parece muito com o seriado. Assim como
no seriado, em Vox a protagonista tem uma amiga feminista , que alerta a todos
sobre o perigo que as mulheres estavam correndo, mas ninguém acredita,
inclusive a protagonista. Assim como no seriado, as protagonistas tem filhos.
Uma diferença é que em Vox a Jean possui filhos adolescentes, que estão sendo
criados em um meio ideológico ultra- conservador e acabam absorvendo essas
ideias. Mas as duas obras são bem similares, por isso o presente livro não me
despertou tamanho assombro e surpresa, pois já tinha sido surpreendida
anteriormente com a adaptação feita do Conto da Aia.
Em Vox, a narração se dá em primeira pessoa. No
meu ponto de vista, as personagens não são muito bem construídas. Gosto
bastante de obras onde o autor humaniza seus personagens, dotando-os de
atitudes contraditórias, por vezes egoístas, mas acho que essa tentativa foi um
pouco fracassada nesse livro. Eu vários momentos me vi com raiva da personagem
tamanho o egoísmo dela em algumas de suas motivações. Primeiro, quando jovem
ela não se importava com política e ainda ridicularizava sua amiga que se
importava. Só passa a querer discutir o assunto quando ela se torna minoria.
Tem uma passagem que tenta problematizar o feminismo branco liberal, mas não é
desenvolvido no livro, sendo trazido muito jogado, o que acaba prejudicando o
envolvimento com essa parte da história. Uma personagem evidencia que as
feministas brancas só se preocupam com as pautas das feministas brancas, no que
a protagonista sente o constrangimento dessa fala, mas não muda em nada suas
atitudes.
O final do livro, apesar de subverter um pouco
a lógica que vinha se desenvolvendo, o que acho um aspecto positivo, é muito apressado.
Os fatos se resolvem muito rapidamente e se encaixam perfeitamente. Há um
clímax que vai se resolvendo, como peças em um quebra cabeça, com pouca
complexidade. Isso não me agradou muito.
Apesar dessas críticas, é um livro acessível à
todos os públicos, por sua linguagem clara e simples: homens e mulheres
deveriam lê-lo e refletir sobre. Nos tempos em que vivemos, onde aqui mesmo no
Brasil tivemos a eleição de um candidato que se mostrou misógino, homofóbico e
racista durante sua campanha, é um ótimo exercício a leitura dessa obra para
questionarmos e conjecturarmos qual será o futuro não só das mulheres, mas dos
oprimidos, que não fazem parte do ápice da escala de poder. Como ler para mim,
é, além de tudo, uma atividade que desperta empatia, que nos coloquemos no
lugar do outro, acredito que seja uma obra necessária, apesar das minhas
críticas. Recomendo a leitura, prestando atenção aos detalhes. Termino o texto
com uma frase da grande pensadora Simone de Beauvoir, que tem muito a ver com a
temática do livro.
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica
ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses
direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a
sua vida.”
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