Resenha
Livro: Úrsula
Autora: Maria Firmina dos
Reis
Ano da publicação: 1859
Vocês já ouviram falar de
Maria Firmina dos Reis? Começo essa resenha com esse questionamento, visto que
na minha época de escola nunca havia ouvido falar dessa incrível autora,
mulher, negra, abolicionista. Ela é autora do primeiro livro escrito por uma
mulher, Úrsula, com temática abolicionista. Pensem o que era naquela época uma
mulher negra escrever um romance que trazia a história de negros e negras como
pessoas, dotadas de características positivas, não animalizadas e além de tudo,
questionando o sistema , patriarcal e escravocrata. Como diz a escritora Chimamanda
Ngozi Adichie, é necessário que escutemos outras histórias. A história não é
única.
Em sua superfície, o
romance possui um enredo simples e folhetinesco: a heroína que dá nome à
história, Úrsula, uma mulher branca e pobre, que vive com a mãe, uma senhora
paralitica, se apaixona por Tancredo, um jovem bacharel , que corresponde seu
amor. Porém, a jovem é objeto da paixão de seu tio, irmão de sua mãe Luisa B.,
um comendador cruel, que jura que sua sobrinha será sua esposa , custe o que
custa. Luisa B. e a filha vivem desamparadas, numa sociedade que tratava as
mulheres como meros objetos de apreciação masculina(algo mudou?). Porém, esse é
o enredo da superfície.
Logo no começo do livro
somos apresentados à Tulio, um jovem negro escravizado, cuja senhoria é a Luisa
B. que salva Tancredo, pois esse havia caído de seu cavalo e ficado
desacordado. Nessa parte, já ficamos conhecendo as virtudes de Tulio, jovem
lindo, negro, escravizado, gentil, bondoso e grato. Ele é colocada em pé de
igualdade com o homem branco , Tancredo , e ainda por cima salva sua vida.
Tancredo, muito agradecido, devota-lhe amizade, que é correspondida, além de
comprar sua carta de alforria.
Também ficamos conhecendo
dois outros negros escravizados: mãe Susana e Antero. Um dos capítulos mais
comoventes do romance é a narrativa de mãe Susana de como era sua vida no
continente africano, com marido, filha e mãe e do dia mais triste de sua vida,
a sua captura pelos europeus. Ela narra a liberdade que tinha em sua terra
natal e que nunca possuiria no Brasil, mesmo que um dia fosse alforriada, pois
sua vida ficara lá. Aqui Maria Firmina inova trazendo uma historicidade ao
negro. Na maior parte das histórias da época, os negros são simplesmente
escravos, anistóricos, animalizados, sem família nem passado. Aqui, Firmina
traz a perspectiva da mulher negra escravizada, e seu passado. Ponto muito
ousado do romance naquela época.
A estratégia da autora é
louvável: com um enredo na superfície simples e atrativo, acabaria por atrair
aquela parcela da população que lia folhetins: burgueses, além da estrutura
típica dos romances românticos. Com isso, esperava traduzir os horrores da
escravidão para essas pessoas dotadas de privilegio. Firmina ainda usa os
valores cristão para rechaçar a escravidão, numa época em que a própria igreja
utilizada a Bíblia para justificar o sistema escravocrata.
Os marginalizados em uma
sociedade patriarcal e escravocrata, as mulheres e os negros, tem voz e vez
nesse romance. Contam sua histórias, são dotadas de sentimentos, de passado, de
perspectivas, existem para além de fazer figuração ao homem branco,
representado pela figura do Comendador. A mensagem é clara: enquanto existisse
o sistema escravocrata e patriarcal, a felicidade de mulheres, negros e
marginalizados da sociedade não seria possível. Pergunto a vocês por que um
romance dessa magnitude e importância não tem destaque maior nas escolas? Por
que, apesar de passados alguns anos do fim da escravidão, vivemos ainda num
país racista, que possui em suas instituições a legitimação para suas práticas.
Um país que mata seus jovens negros pelas mãos do Estado, que segrega, que magoa,
que marginaliza. É necessário que façamos um esforço de sempre perseguir outras
histórias, contadas pelo outro, pela mulher, pelo negro, pelo indígena, ou
seja, pelo oprimido, a fim de mudar essa homogeneização, pois somos e sempre
seremos plurais. Recomendo a leitura.